Perdão e pandemia – questões de constitucionalidade, por Rui Pereira

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Lei n.º 9/2020, de 10 de abril 

(Regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça)

Questões de constitucionalidade

1 – Não sofre contestação que uma lei de amnistia ou de perdão genérico, sendo uma verdadeira lei penal, está sujeita aos princípios constitucionais de Direito Penal e Política Criminal (assim, incisivamente, Fernanda Palma, em declaração de voto ao Acórdão do Tribunal Constitucional nº 519/98, de 14 de julho: trata-se de “uma lei penal que apaga o crime durante um certo lapso de tempo… de uma lei descriminalizadora temporária”.). 

Mesmo que se reconheça que a admissibilidade da amnistia não é delimitada pelos fins específicos da política criminal, reduzidos à clássica tríade dos fins das penas – prevenção geral, prevenção especial, retribuição -, o que permite aceitar as amnistias ditadas por razões de magnanimidade (por exemplo, a visita do Papa), por razões políticas gerais (crimes das FP 25 de Abril) ou corretivas (seja da lei penal seja da jurisprudência), os princípios da legalidade, da necessidade da pena, da culpa e da igualdade conformam o seu conteúdo (cf. a abundante fundamentação do citado Acórdão nº 519/98, relatado por Sousa e Brito).

2 – Ao estabelecer um perdão genérico (até dois anos de prisão), a Lei n.º 9/2020, de 10 de abril respeita o princípio da legalidade, tanto em relação à reserva de lei como quanto às exigências de precisão das normas (tipicidade). Por outro lado, os princípios da necessidade da pena (artigos 18º, nº 2, da Constituição e 40º do Código Penal) e da culpa (artigo 1º da Constituição) não estão aqui, manifestamente, em causa: em primeiro lugar, porque se trata de princípios restritivos da responsabilidade, dos quais não se deduz o dever de punir; em segundo lugar, porque a amnistia é permeável, por natureza, a considerações políticas gerais. 

Com efeito, nesta lei, o perdão genérico é ditado por razões humanitárias e de saúde pública, no quadro de uma pandemia, embora lhe co-subjaza um problema (crónico) de excesso de lotação dos estabelecimentos prisionais, que não permite isolar reclusos contaminados pela doença.

3 – No entanto, o princípio constitucional com o qual a lei se confronta é, decisivamente, o princípio da igualdade, por várias razões: em primeiro lugar, não é aceitável que tenham sido subtraídos ao âmbito do perdão genérico certos crimes graves (terrorismo e organização terrorista) e nele incluídos alguns crimes menos graves (seja qual for a perspetiva político-criminal em que se aprecie a gravidade desses crimes); em segundo lugar, é inadmissível que beneficiem do perdão genérico arguidos punidos com penas mais graves (prisão) e sejam esquecidos arguidos punidos com penas menos graves (multa), pela prática dos mesmos crimes. Estes aspetos, focados no artigo de Fernanda Palma que abriu este sítio na internet, consubstanciam claras violações do princípio da igualdade.

Como corrigir estas desigualdades? Como é óbvio, aos condenados por crimes de terrorismo não se pode aplicar in malam partem uma analogia que obste a que eventualmente beneficiem do perdão genérico. Quando muito, a solução admissível seria a inversa – conceder o perdão genérico a agentes e crimes excetuados do perdão genérico, por se considerar que essa exceção é inconstitucional, por violar o princípio da igualdade, quando confrontada com os casos de terrorismo.

Por outro lado, no caso da multa, pode formular-se também uma obrigação de perdão do Estado, nos casos em que esta solução sancionatória foi preferida à prisão em nome de necessidades preventivas, gerais e especiais, menos intensas.

4 – Um outro problema de igualdade que ainda se coloca diz respeito ao âmbito de aplicação das medidas de saída administrativa (até 45 dias renováveis), antecipação da liberdade condicional (pelo período máximo de seis meses e subsequente às saídas administrativas) e reexame da prisão preventiva. A lei não exclui os crimes considerados graves nem os agentes com responsabilidades “especiais” (políticos, magistrados, polícias) do âmbito de aplicação destas medidas. Todavia, logo no artigo 1º, estabelece que (todas) as medidas da lei se não aplicam a condenados por crimes cometidos “contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários e guardas dos serviços prisionais, no exercício das respetivas funções”. 

Está aqui em causa um manifesto lapso, porque o legislador não quis reservar um regime especial para estes crimes. Com efeito, eles até haviam sido esquecidos na proposta de lei e foi a discussão parlamentar que, muito compreensivelmente, detetou a “lacuna”, por se ter entendido que não seria razoável excluir do âmbito do perdão crimes cometidos por agentes do Estado e esquecer os crimes cometidos contra agentes do Estado. Também aqui a superação da inconstitucionalidade só pode ser operada in bonam partem, estendendo aos crimes cometidos contra agentes do Estado o regime previsto para os crimes mais graves ou cometidos por esses agentes.

5 – Um último problema de constitucionalidade que a lei coloca diz respeito ao âmbito do indulto presidencial. De forma inédita, o indulto, que corresponde a uma medida casuística e irrestrita de graça da competência do Presidente da República, é aqui subordinado (aliás, com o seu aparente consentimento político) a restrições que são importadas do próprio regime do perdão genérico.

A verdade, porém, é que não parece admissível que uma lei da Assembleia da República restrinja os poderes presidenciais previstos na Constituição (artigo 134º, alínea f). A Assembleia tem de se limitar, nesta matéria, à sua reserva de competência legislativa, ou seja, às amnistias e aos perdões genéricos (artigo 161º, alínea f) da Constituição). A concordância do Presidente não é aqui parâmetro de constitucionalidade (o Presidente é que deve, na concessão de indultos, disciplinar com os critérios que lhe pareçam razoáveis a sua própria ação política). Imagine-se que a Assembleia decidia, doravante, limitar os critérios dos indultos e comutações presidenciais…

6 – Uma lei de amnistia é passível de fiscalização de constitucionalidade (preventiva, abstrata sucessiva, concreta sucessiva; não por omissão, na medida em que não se configura a existência e consequente violação de deveres de amnistiar). No entanto, no quadro do estado de emergência, dificilmente a fiscalização poderá ter consequências práticas. A fiscalização preventiva não foi solicitada (se o fosse anularia ou diminuiria os efeitos prosseguidos pela lei) e a fiscalização abstrata sucessiva dificilmente será pedida por alguma das entidades competentes e, muito provavelmente, seria apreciada quando a lei já não estivesse em vigor e suscitaria um problema de interesse no conhecimento do respetivo objeto.

De todo o modo, não se pode excluir a possibilidade de interposição de recursos de constitucionalidade por aqueles que forem discriminados negativamente, nos termos que referi.

Lisboa, 13 de abril de 2020

Rui Pereira

(Professor Convidado no ISCSP e no ISCPSI)

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