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O elenco de crimes que ficam excluídos do regime do perdão estabelecido no número 6 do artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, convoca múltiplas ponderações pelo insuficiente esclarecimento sobre o critério de selecção dos crimes e respectiva ratio. O catálogo parece reflectir duas preocupações essenciais, já enunciadas e problematizadas no artigo da Professora Maria Fernanda Palma «“Comentários de emergência” à lei do perdão das penas» (publicado neste blog a 10 de Abril de 2020), interessando-nos, neste texto em particular, o referente à «defesa da sociedade e a prevenção especial, na perspectiva da perigosidade dos agentes em conexão com os crimes mais violentos e intoleráveis contra as pessoas». Entre as várias questões que o art. 2.º, n.º 6, convoca, escolhemos, no âmbito deste pequeno escrito, a que resulta da confrontação da referida fundamentação e a realidade empírica com que nos deparamos, respeitante ao problema de saber se o crime de propagação de doença contagiosa (art. 283.º, n.º 1, al. a), do Código Penal) está, ou não, excluído do âmbito material do perdão, uma vez que o mesmo tem evidente relevância e gravidade no actual contexto de saúde pública.
O crime de propagação de doença contagiosa não está elencado nos crimes cuja possibilidade de perdão fica afastada (art. 2.º, n.º 6, da Lei n.º 9/2020), pelo que se impõe, de imediato, a conclusão de que, desde que verificados os restantes pressupostos, é admissível, à luz da presente Lei, o perdão em casos de condenação pelo crime mencionado.
Se a ausência da sua contemplação se poderá explicar pela inaplicabilidade do perdão aos casos actuais de contágio – uma vez que o mesmo apenas poderá ser empregado em situações cuja decisão sobre a pena em que foi condenado o arguido tenha transitado em julgado antes da vigência do diploma (art. 2.º, n.º 7) –, não podemos deixar de questionar sobre a possibilidade de perdão em casos cuja propagação seja de doença diferente da Covid-19: ainda que estas situações não revistam o carácter pandémico e de emergência para a saúde pública que caracteriza a propagação da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2, poderá perguntar-se se esta distinção terá fundamento bastante.
Por um lado, há que considerar a perigosidade para a integridade física ou vida de outrem[1] que poderá ser criada com a sua prática, podendo colocar o contagiado num estado de vulnerabilidade acrescida que o tornará mais frágil perante uma eventual infecção epidemiológica por SARS-CoV-2.
Por outro lado, o contágio poderá levar ao desenvolvimento de uma doença cujo tratamento exigirá a mobilização de meios técnicos e humanos que atravessam, em crescendo, uma dramática crise. Se o legislador protegeu bens jurídicos pessoais graves, excluindo-os do âmbito material do perdão, causa perplexidade que tenha sido omisso quanto a um crime que – hoje, mais que alguma vez neste século – se poderá materializar uma afectação tão significativa dos mesmos.
Ademais, a aplicação do perdão em casos em que tenha havido condenação pela prática deste crime resultaria, precisamente, na abertura para uma visão de impunidade sobre os comportamentos que elevem o número de contágios pelo SARS-CoV-2: se estes não podem ser abrangidos pelo perdão (pelo, já referido, pressuposto da condenação anterior à vigência da lei transitada em julgado), a possibilidade da sua utilização em caso de condenação pelo crime em questão, mesmo que referente a doença diversa, poderá traduzir-se numa distinção socialmente confusa e num factor enfraquecedor do almejado cumprimento das «exigências relativas de prevenção, geral e especial, e de estabilização dos sentimentos de segurança comunitários» (exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 23/XIV, Presidência do Conselho de Ministros).
Em conclusão, a ausência de referência ao crime de propagação de doença contagiosa pelo legislador a propósito do perdão representa uma contradição sistemática que, se, à primeira vista é meramente teórica, poderá, com efeito, concretizar-se em soluções práticas inadequadas. É certo que a relevância prática destas observações apenas será efectiva se estiverem, à data, indivíduos a cumprir pena pela prática do crime em causa. Embora tenhamos registos sobre a prática dos mesmos[2], as estatísticas oficiais disponíveis não nos permitem concluir sobre o actual cumprimento de pena na sequência dessas condenações[3]. Ainda assim, a possibilidade de que tal se verifique justifica a reflexão aqui exposta e impõe, caso os dados empíricos a que o legislador tenha acesso o confirmem, uma reflexão deste sobre este ponto.
[1] Seguimos, na linha defendida pela Professora Maria Fernanda Palma, ainda recentemente, no texto «Propagação de doença contagiosa», publicado neste espaço a 10 de Abril, a protecção da vida e integridade física de outrem, por oposição a uma perspectiva de protecção de saúde pública que apenas admita o preenchimento do tipo nos casos de lesão ou perigo de lesão múltipla, negando as situações de transmissão directa para uma única pessoa.
[2] No Relatório Anual de Estatísticas da APAV de 2018, página 8, registavam-se três crimes de propagação de doença contagiosa: https://apav.pt/apav_v3/images/pdf/Estatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2018.pdf.
Relatórios anteriores também notavam a prática do referido crime: dois no Relatório de 2017, página 9 (https://apav.pt/apav_v3/images/pdf/Estatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2017.pdf); um no Relatório de 2016, página 8 (https://apav.pt/apav_v3/images/pdf/Estatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016.pdf); um no Relatório de 2015, página 17 (https://apav.pt/apav_v3/images/pdf/Estatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2015.pdf); três no Relatório de 2013, página 10 (https://apav.pt/apav_v3/images/pdf/Estatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2013.pdf); quatro no Relatório de 2012, página 9 (https://apav.pt/apav_v3/images/pdf/Estatisticas_APAV_Totais_Nacionais_2012.pdf); seis no Relatório de 2011, página 25 (https://apav.pt/apav_v3/images/pdf/Estatisticas_APAV_RelatorioAnual_2011.pdf).
[3] As Estatísticas de Justiça disponíveis para o público em geral não autonomizam os dados sobre o número de condenados pela prática deste crime. Contudo, não podemos descartar, sem mais, a possibilidade de que a propagação de doença contagiosa esteja integrada na categoria de «outros crimes» (https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt).
A mesma questão se coloca no que respeita aos Números da Justiça publicados em Dezembro de 2019, que apenas autonomizam a categoria dos «crimes contra a vida em sociedade», sem referir cada crime em particular, no gráfico sobre os Reclusos condenados nos estabelecimentos prisionais, segundo o tipo de crime (31 de dezembro de 2007-2018), pág. 33 (https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Destaques/20191213_Os_numeros_da_justica_2018.pdf), observando-se igualmente esta categorização nos Números da Justiça de 2017, publicados em Novembro de 2018, no gráfico referente aos Reclusos condenados nos estabelecimentos prisionais, segundo o tipo de crime (31 de dezembro de 2007-2017), pág. 34 (https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Destaques/20181129_OsNumerosDaJustica_2017.pdf), bem como Números da Justiça de 2016, publicados em Novembro de 2017, no gráfico referente aos Reclusos condenados nos estabelecimentos prisionais, segundo o tipo de crime (31 de dezembro de 2007-2016), pág. 34 (https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Destaques/20171214_DOsNumerosDaJustica_2016.pdf), nos de 2015, publicados a Dezembro de 2016, no gráfico sobre os Reclusos condenados nos estabelecimentos prisionais, segundo o tipo de crime (31 de dezembro de 2007-2015), pág. 35 (https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Destaques/20161220_Os%20n%C3%BAmeros%20da%20Justi%C3%A7a_2015.pdf), nos de 2014, publicados em Dezembro de 2015, no gráfico sobre os Reclusos condenados nos estabelecimentos prisionais, segundo o tipo de crime (31 de dezembro de 2007-2014), pág. 36 (https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Destaques/20151218_Os_numeros_Justi%C3%A7a_2014.pdf).
A mesma autonomização é realizada nas Estatísticas sobre reclusos nos estabelecimentos prisionais e jovens internados em centros educativos (2010-2018), publicadas no Boletim de Informação Estatística n.º 64, em Maio de 2019, pág. 2, figura 4, sobre Reclusos nos estabelecimentos prisionais segundo o tipo de crime (https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Destaques/20190531_D64_ReclusosEJovensInternados_2010-2018.pdf), à semelhança das referentes a 2010-2017, publicadas no Boletim de Informação Estatística n.º 58, em Maio de 2018, pág. 2, fig. 4 (https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Destaques/20180530_D58_ReclusosEJovensInternados_2010-2017.pdf).
Refira-se, ainda, a categoria de «outros crimes de perigo comum», nos dados sobre o número de condenados nos tribunais de 1.ª instância (https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Paginas/Condenados-em-processos-crime-nos-tribunais-judiciais-de-1-instancia.aspx).
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