Segunda Parte
(a primeira parte do texto pode ser lida aqui)
Medidas menos gravosas e efeitos colaterais
A investigação sobre a legitimidade material de um ilícito de propagação de doença enfrenta a inicial crítica de que há, historicamente, medidas menos intrusivas (e porventura até mais eficazes) na dissuasão pessoal e na contenção geral dessa propagação. Desde logo, o estabelecimento de quarentenas ou regras de confinamento obrigatório são medidas alternativas privilegiadas pelas autoridades de saúde, o que se explica pelos resultados que garantem. Mas a dissuasão de comportamentos de propagação é também melhor prosseguida, argumenta-se, através da implementação de uma política de educação e pedagogia sobre os perigos associados a cadeias de contágio ou através da criação de incentivos ou mesmo da introdução de regras de conduta e de cuidado de natureza cível ou regulamentar, mas sempre não-penais [1]. De resto, as Nações Unidas, ainda que especificamente no contexto do vírus HIV/SIDA, concretamente no seu “Report of the Special Rapporteur on the right of everyone to the enjoyment of the highest attainable standard of physical and mental health”, vêm salientando que qualquer abordagem legal a uma doença contagiosa deve privilegiar a optimização das infra-estruturas públicas, o acesso a medicamentos e a promoção de campanhas de sensibilização e que “criminalization of HIV transmission should not form the mainstay of a national HIV/AIDS response, and its necessity is questionable in any event”.
Acresce que mesmo onde e quando se opta pela intervenção criminal, os resultados não são preclaros. A criminalização da propagação de doenças é associada a um aumento do estigma e da discriminação do doente, contribuindo para a sua alienação e para a percepção de que a pessoa infectada não deve permanecer em sociedade. Um exemplo recente disso mesmo pode ser encontrado no caso Teresa Romero, enfermeira espanhola que prestou assistência a pacientes infectados com ébola e que nos dias seguintes foi alvo de uma violenta campanha pública com vista à sua detenção, designadamente a partir de notícias falsas que davam nota da sua falta de cuidado na vida pessoal — por continuar, por exemplo, a frequentar o cabeleireiro [2].
Nesta senda, sustenta-se também que a solução penal se revela muitas vezes contra-producente, na medida em que desencoraja o cumprimento das recomendações e o contacto dos doentes com as autoridades médicas, o que seria pernicioso porquanto as políticas públicas de saúde dependem de uma cultura de proximidade e da capacidade de encontrar soluções inclusivas. Adicionalmente, não é de todo inequívoco que a introdução de uma incriminação desempenhe sequer papel algum na modelação dos comportamentos das pessoas infectadas, como salientado pelas Nações Unidas, ainda que novamente no contexto do vírus HIV/SIDA [3].
Por fim, e ainda que se lograsse superar todas estas críticas, a incorporação de um crime autónomo de propagação de doença permaneceria ainda de utilidade discutível, uma vez que, conforme vem sendo sustentado na Alemanha, em França e em Espanha, a proibição de um comportamento dessa natureza seria ainda subsumível a crimes preexistentes, mormente o crime de ofensa à integridade física.

Propagação de doença e COVID-19
As mais comuns críticas à incriminação da propagação de doença que vimos de listar baseiam-se, em grande parte, nas especificidades, formas e probabilidades de transmissão pessoal do vírus HIV/SIDA. A singularidade do vírus Covid-19, incluindo quanto à taxa e forma de contágio, impõe adicional moderação no exame a estas críticas específicas a uma incriminação que, pelo menos no caso português, é bem mais ampla. É notório que a velocidade e formas de propagação deste vírus respiratório — que, como se vem apurando, se propaga principalmente através de gotículas produzidas por tosse ou espirro ou através da saliva — levanta novos problemas, certamente nunca pensados na articulação do Direito Penal com o vírus HIV/SIDA. Com efeito, e como se tem constatado, o vírus Covid-19 não só se propaga mais rápida e facilmente, incluindo através do contacto com superfícies, como pode existir no seio de uma dada comunidade sem que os membros que a integram disso sequer se apercebam numa fase inicial. A existência de pacientes assintomáticos agrava este problema, transportando consigo adicionais dificuldades na prevenção da transmissibilidade pessoal da doença. As hipóteses de propagação inconsciente são, pois, elevadíssimas, o que vai também diminuir a taxa de sucesso das políticas de saúde comummente privilegiadas, isto é, as quarentenas e os confinamentos obrigatórios.
Ainda que assim não fosse e se continuasse a admitir que as medidas de saúde pública de natureza não penal prosseguem melhor e suficientemente os propósitos de contenção de doença de Covid-19, a carência de tutela penal poderia continuar a ser afirmada, visto que, como se torna manifesto em situações limite, esta norma criminal se dota de uma utilidade adicional na dissuasão e punição de quem propaga o vírus. Sempre se poderá argumentar que, pese embora os sucessos das políticas de confinamento, o dano associado ao incumprimento dessas políticas por um só indivíduo configura uma situação de tal forma grave — também porque passível de pôr em perigo o sucesso dessas soluções implementada — que sempre reclamará intervenção penal. Aqui chegados, faz até pouco sentido vir apontar o suposto efeito estigmatizante da incriminação — argumento, de resto, que nem encontra um suficiente suporte empírico [4], pelo menos perante doenças que não o vírus HIV/SIDA — ou a sua putativa tendência para desviar o foco da necessidade de cumprimento das recomendações de saúde quando as próprias medidas ditas mais eficazes como as quarentenas e os confinamentos são o mais das vezes dobradas por ameaças de sanção penal — habitualmente, o crime de desobediência — com o intuito oposto, isto é, com o propósito de sinalizar a indispensabilidade da observância dessas regras. Dito de outro modo, mais sintético, as medidas não-punitivas e medidas punitivas podem legitimamente conviver no quadro de uma mesma política de contenção de doença, sem que isso indicie o excesso da intervenção penal, principalmente quando essa intervenção seja apta a reforçar o cumprimento das medidas de saúde ou permita agir sobre situações de perigo para a saúde pública que de outra forma passariam impunes.
Fica, todavia, por elucidar por que seria de autonomizar uma incriminação da propagação de doença quando outros ilícitos como a ofensa à integridade física, o homicídio ou o crime de desobediência aparentam já prevenir e tutelar comportamentos dessa natureza, conforme vem sendo entendimento de vários outros países.
A este propósito, não é, logo à partida, de menorizar a utilidade da introdução de um ilícito de propagação de doença para a dissipação das dúvidas — e consequente diminuição da imprevisibilidade e segurança jurídica — sobre as concretas condutas de propagação de doença que são já tuteladas ao abrigo de crimes tradicionais [5]. E isto porque, embora, entre nós, o crime de ofensa à integridade física preveja a “ofensa à saúde” como punível, e até estipule uma agravação quando se cause “doença particularmente dolorosa ou permanente” (artigo 144.º, alínea c), do Código Penal), a verdade é que a norma em causa não é nada clara a respeito das situações da transmissão de doença, mormente quando a enfermidade em causa não seja sequer susceptível de gerar qualquer tipo de sintomas [6].
Mais: um crime de perigo de propagação de doença como aquele previsto no artigo 283.º do Código Penal permite punir, ou mesmo punir de forma mais adequada, condutas que, de outra forma, seriam criminalmente irrelevantes ou objecto de uma condenação desproporcional, não obstante os sérios perigos de danos que podem causar à saúde pública. Assim sucederá, por exemplo, perante um comportamento de contaminação que provoque um perigo nunca consumado para a integridade física. Num cenário destes, estará preenchido o crime de propagação de doença do artigo 283.º do Código Penal, e não apenas eventual ofensa à integridade física simples (que sempre dependeria da prévia demonstração de que tal contaminação constitui já um típico “dano à saúde”) ou tentativa de ofensa à integridade física grave. Ainda mais pertinentemente, o crime do artigo 283.º do Código Penal torna inequivocamente punível a conduta de propagação de doença com um dolo de perigo não individualizado, isto é, dirigido à difusão da doença na comunidade. E permitirá ainda sancionar penalmente a conduta de quem, através de propagação de doença, contagia um terceiro sem causar qualquer perigo para a sua integridade física, mas que vem posteriormente a contactar com uma outra pessoa que, por ser de um grupo de risco, sofre complicações como consequência do contacto com a doença cuja cadeia de contágio o agente iniciou.
A compreensão deste alcance diferenciador do crime de propagação de doença é, de resto, uma consequência do bem jurídico complexo que o mesmo tutela, que abrange a integridade física e a vida individual, por um lado, mas também a segurança da saúde pública, por outro, como argumenta Maria Fernanda Palma [7]. Acompanhando a Autora, “[o] que está em causa é o controle de um poder social real de transmitir uma doença”. Ora, assim compreendido o objecto do ilícito em causa, as virtudes da sua autonomização no ordenamento penal tornam-se mais visíveis, pois que os seus propósitos punitivos extravasam os limites típicos das ofensas imediatas a bens jurídicos pessoais (que já seriam puníveis) para abarcar também as condutas que coloquem em perigo a saúde pública, mesmo que de forma mediata. O que também facilita em muito o enquadramento da responsabilidade das pessoas colectivas como sujeito deste crime, conforme o artigo 11.º do Código Penal vem admitir. Por exemplo num cenário em que a empresa não faculta os meios materiais e formativos necessários a um grupo de trabalhadores.
Não obstante, o crime de propagação de doença permanece permeável a críticas diversas no que respeita à sua aplicabilidade, as mais frequentes das quais relacionadas com a imputação da propagação e com conexas probatio diabolicas. O vírus Covid-19 amplifica estas dificuldades precisamente porque, face às particularidades e facilidade da sua transmissão, será o mais das vezes, e para dizer o mínimo, especulativo assumir que um dado contágio ocorreu em consequência de um concreto comportamento de propagação levado a cabo por um determinado agente — e não, por exemplo, na sequência do contacto com uma qualquer superfície ou pela proximidade a uma outra pessoa. A inibição que pode resultar deste risco de valoração de actuações indeterminadas, ou mesmo indetermináveis, põe em crise a utilidade prática do ilícito. Não será alheio a isso mesmo a notícia recente de que o Ministério Público português tem optado por não imputar o crime de propagação de doença no contexto de condutas de propagação ou de perigo de propagação no contexto da epidemia de Covid-19 [8].
Também passível de suscitar dúvidas é a opção do legislador português de criminalizar a conduta de propagação de doença mesmo em casos de negligência na propagação, uma solução nada consensual mesmo junto dos Estados que optam pela incriminação. No âmbito do combate ao vírus HIV/SIDA, vírus que, como é sabido, até implica um contacto pessoal mais próximo e intenso com a vítima do que o vírus Covid-19, as Nações Unidas vêm apelando à exclusão da incidência penal sobre condutas de propagação não intencionais por ausência de carência penal (“inappropriate”) [9]. Novamente, o tema é bem mais complexo se perspectivado fora do quadro do vírus HIV/SIDA, como compete ao legislador na enunciação de um tipo penal de propagação de doença. Há situações, como no caso dos hemofílicos citado por Maria Fernanda Palma em artigo publicado neste blog, em que a violação negligente do dever de cuidado e os riscos potenciais daí advenientes ascendem a um patamar em que se torna plenamente sustentável a intervenção penal. Por outro lado, perante as particularidades do vírus de Covid-19 — e supondo agora que seria possível ultrapassar os problemas de adequação e imputação da propagação —, a punição da conduta a título negligente, além de poder não atingir esse patamar devido a uma quase inevitabilidade das cadeias de transmissão comunitárias, poderia culminar numa massificação da responsabilidade penal: basta pensar nos casos de uma pessoa que esteve recentemente em contacto com alguém a quem veio a ser diagnosticado o vírus e que se desloca ao mercado ou a outro sítio público.
Em face do exposto, não surpreenderá a constatação da reduzida aplicabilidade do crime do artigo 283.º do Código Penal, como parece resultar das estatísticas recolhidas por Rita do Rosário, em artigo neste blog, e também da verificação de que existem em fontes públicas apenas dois Acórdãos [10] que versam sobre condenações por este ilícito (e em ambos na forma tentada). O crime de propagação de doença é de aproximação difícil, tanto no que se reporta à legitimação material da incriminação, como na compreensão e articulação de todos os seus elementos típicos e subsequente aplicação casuística. Trata-se, pois, de um viveiro de problemas e dilemas clássicos de Direito Penal, agora inesperadamente sob foco no contexto da epidemia de Covid-19.
[1] Assim, e entre outras medidas alternativas, Hannah Quirk / Catherine Stanton, “Disease Transmisson and the Criminal Law: A Growing Concern?” in Criminalising Contagion, ob. cit., p. 1.
[2] Sobre o tema, Samuel Fernández, “Responsabilidad Penal y contagio de ébola” in Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia, 16-17, 2014, p. 19-22, disponível em: http://criminet.ugr.es
[3] “[T]here is little evidence that specific laws criminalizing HIV transmission deter or modify the behaviour of individuals. With little benefit demonstrated in terms of achieving the aims of the criminal law or public health, and a corresponding risk of alienation, stigmatization and fear, it is difficult to see why the criminalization of HIV transmission is justified at all. Laws that are unnecessarily punitive will undermine any public health response to HIV, rather than assist it”, in United Nations – General Assembly, Report of the Special Rapporteur on the right of everyone to the enjoyment of the highest attainable standard of physical and mental health, parágrafo 73.
[4] Referindo-se à ausência de indicadores empíricos que sustentem este efeito estigmatizante da intervenção penal, v. Matthew Weait, “HIV and the meaning of harm” in Criminalising Contagion, ob. cit., p. 19.
[5] Indicando que a punição da transmissão de doença ao abrigo dos ilícitos penais gerais conduzirá a “greater legal uncertainty”, v. Aslak Syse, ob. cit.,p. 111.
[6] Para uma interessente, mas a várias títulos questionável, sustentação de que a contaminação com uma doença transmissível pode nem sequer constituir uma ocorrência criminalmente relevante a partir da análise do contágio com o vírus HIV/SIDA, v. Matthew Weait, ob cit., p. 18-34.
[7] Maria Fernanda Palma, “Propagação de doença” in https://cidpcc.wordpress.com/2020/04/10/propagacao-de-doenca-contagiosa-por-maria-fernanda-palma/. Em sentido oposto, isto é, identificando apenas uma tutela individual de bens jurídicos como a vida ou a integridade física, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª edição, UCP Editora, Lisboa, 2010, p. 1010; Damião da Cunha in Comentário Conimbricense do Código Penal (dir. Jorge de Figueiredo Dias), Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pp. 1007-1008; J.M Castela Rio / M. Miguez Garcia, Código Penal – Parte Geral e Especial com notas e comentários, 3.ª edição, Almedina, 2018, p. 1247.
[8] Isso mesmo foi noticiado pelo Jornal de Notícias na edição de 08.04.2020, p. 19.
[9] UNAIDS e UNDP, “Criminalization of HIV Transmission”, Policy Brief, Genebra, 2008, p. 1, disponível em: https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/jc1601_policy_brief_criminalization_long_en.pdf. No mesmo sentido, United Nations – General Assembly, Report of the Special Rapporteur on the right of everyone to the enjoyment of the highest attainable standard of physical and mental health, parágrafos 74 e 75-.
[10] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10.10.2017, proc. n.º 17/15..8PFSTB.E1, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/-/69D29FFEF9AB667A802581C3004AB047. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.05.2019, proc. n.º 765/15.5T9LAG.E1.S1, disponível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/5d4936b972749b0e802583fd002da840?OpenDocument.