Conflitos Covid-19 e espaço livre da Ética, por Maria Fernanda Palma

Conflitos Covid-19 e espaço livre da Ética

Na Filosofia do Direito, existe uma categoria a que tradicionalmente se recorre – o espaço livre do Direito. Arthur Kaufmann esclarece que se trata sempre de um juridicamente não valorado e não de um juridicamente não regulado (Kaufmann, A., Philosophie des Rechts,1997,p.226), havendo sobre o tema um texto clássico de Engisch (Engisch, K., ZStaat108,1952, pp. 385e ss.).

Tanto a tradição estóica da tábua de Carneades como o discurso kantiano na Metafísica dos Costumes (Metaphysik der Sitten ,Ersther Teil Metaphysischen Anfangsgruenden der Rechtslehre,1798) ou o discurso fichteano (Fichte, J.G, Grundlage des Naturrechts nach Prinzipien des Wissenschaftslehre,1834/35 , com a sua Exemptionstheorie;Palma, Maria F,Direito Penal, Parte Gera,4ªed, 2019, p.262 ) reconhecem que o Direito tem os seus limites insuperáveis e que, em certos casos de conflitos existenciais, nem a pena de morte pode ser motivadora. O Direito, quando não pode cumprir o seu papel de motivação pelas normas, nada mais tem a fazer do que retirar‑se da valoração das situações, deixando à ética social ou à pura moral individual a introdução de critérios de solução de conflitos ou dilemas, isto é, a sua regulação.

A questão que coloco é saber se nesta situação de pandemia, em que a força motivadora e autovinculativa do Direito pode estar em causa, este deve ceder o seu espaço valorativo à Ética ou até mesmo a uma pura lógica de sobrevivência das sociedades, sem cumprir a sua missão de oferecer critérios de solução de conflitos através de ideais de justiça. Estaremos numa espécie de estado de necessidade existencial gigantesco e coletivo em que a voz do Direito deixa de ter cabimento?

Bernard Williams, com o seu liberalismo prudente, tem uma frase que considero inspiradora “The limitation of the moral life is itself morally important” (Williams, B., Moral Luck,1981, p.38), levando-me a pensar que a moralidade que ultrapassa o que seja aceitável pelos destinatários, numa perspetiva de experiência de vida ou mais sofisticadamente de ética do discurso, se torna excessiva e, por isso, não moral noutras perspetivas (Palma, F., Princípio da Desculpa,2005, p.198 e ss..).

Ora o que cabe perguntar nestas circunstâncias é não tanto se os limites do Direito têm de ser ultrapassados, mas antes se os limites da Moral não impõem que o Direito alargue os seus limites e reclame mesmo que conflitos, que não é da sua natureza valorar sejam sujeitos à sua intervenção valorativa. A minha pergunta não é, assim, saber se o Direito se deve retirar do espaço da Ética, mas sim o contrário, isto é, se a Ética, ela mesma, em face dos seus limites, impõe a intervenção do Direito devido à sua insuficiência de fundamentação e pluralidade.

Deste modo, no conflito possível de falta de ventiladores ou dos próprios meios de intervenção médica, numa situação de escassez, a remissão do Direito para a Deontologia Médica, abstendo‑se de valorar e até de regular, não é uma resposta a-problemática. Com efeito, a Deontologia Médica só superaria o Direito se os meros princípios da beneficência e da não maleficência da Bioética fossem satisfatórios e concretos numa situação de pandemia e colapso dos serviços de saúde.

Em geral, o Direito Penal do Estado de Direito aceita como justificado o cumprimento do dever de salvar uma das vidas em conflito, quando se trate de deveres de ação e não de conflitos entre deveres de ação e de omissão, em que prevalecem os últimos(Palma, Maria F., Direito Penal, 2019, p.341 ess). Remete, assim, para o espaço livre do Direito a escolha – o que só pode significar que remete para a Ética. Mas se a resposta ética não for indiscutível ou se puder absorver o preconceito ou a discriminação social ou cultural é a própria Ética que se torna o campo do conflito, não podendo o Direito deixar de moderar ou solucionar com os seus critérios de imparcialidade esse mesmo conflito.

As normas éticas ou aparentemente deontológicas que em vários países são emitidas para orientar os procedimentos dos médicos ou das instituições hospitalares não terão a natureza de Direito, isto é, não procurarão orientar os comportamentos dos médicos em situações de conflitos de vidas com eficácia nos direitos fundamentais de qualquer pessoa? Não estaremos perante algo que ultrapassará o espaço livre do Direito, por lhe pertencer a caraterística fundamental do jurídico, ou seja, a reclamação de uma solução imparcial e justa de um conflito? Não é a justiça do Direito que é ativada com tais regras? Seguindo Baptista Machado(O sistema científico e a Teoria de Kelsen Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, 1985, p.27e ss..),não há uma juridicidade intrínseca nessas regras?

Se houver essa juridicidade intrínseca, então as regras devem ser emitidas ou pelo menos reconhecidas pelo Estado de Direito democrático através dos seus critérios e mecanismos. Se não o forem, é óbvio que os médicos que as não cumpram não poderão ser autores de qualquer ilícito, mesmo disciplinar, pois o ilícito disciplinar em factos desta natureza, que afetem direitos de qualquer cidadão, sempre poderá ser “justificado” pela causa de justificação penal. E esta basta‑se com o cumprimento de um dos deveres igualmente vinculativos na perspetiva do Direito.

Quanto ao conteúdo, tais regras supostamente técnicas apenas poderão utilizar critérios médicos, isto é, de adequação de um tratamento à salvação de um doente, a partir da sua condição e das probabilidades de cura. Mas nunca poderão utilizar critérios de sexo, idade, raça, cidadania ou outros pertencentes a esferas de Justiça diferentes da inerente à atividade médica, mesmo que valiosos na perspetiva do bem-estar da maioria, da maior utilidade social ou do menor dano à sociedade.

Em consequência do que se disse posso apresentar um primeiro conjunto de conclusões:

1ª – Há prevalência inequívoca do dever de omissão sobre o dever de ação, nos termos do artigo 36º do Código Penal. Desligar o meio de suporte da vida a máquina de um paciente que ainda tem probabilidades razoáveis de sobreviver para o utilizar num outro paciente (mesmo que tenha mais probabilidades de sobrevivência) não cumpre as exigências da causa de justificação e é, por isso, um homicídio.

2ª –  Utilizar ab initio um meio de suporte da vida num paciente com doença menos grave e com mais probabilidades de sobreviver sem o referido suporte, em detrimento de outro doente com doença mais grave e com menos probabilidades de sobreviver sem o suporte, não é um comportamento justificado, à luz do artigo 36º do Código Penal.

3ª – O critério do confronto entre a maior e menor probabilidade de cura em doentes que tenham ab initio doença da mesma gravidade não viola o artigo 36º do Código Penal.

4ª – Pelo contrário, a utilização do meio de suporte da vida num paciente com doença igualmente grave, mas uma residual capacidade de recuperação em relação ao outro, não é justificada à luz do artigo 36º, podendo, no entanto, ser desculpada.

5. A utilização de critérios eugénicos (idade, deficiência, utilidade social do paciente ou outro semelhante) é discriminatória e, no mínimo, alheia a uma da justificação plena por ausência do elemento subjetivo da causa de justificação do conflito de deveres.

6. As soluções de sorteio só são admissíveis em situações em que o estado dos pacientes é igualmente grave e todos tenham igual possibilidade de sobrevivência.

Todos estes critérios resultam de um princípio constitucional de essencial e igual valor de todas as vidas, decorrente da igual e essencial dignidade de cada pessoa e do direito à vida (artigos 1º e 24º da Constituição).

Por fim, é evidente que a questão prévia que conflitos deste tipo colocam é a opção por uma política de saúde que vise impedir as situações materiais que os suscitam. Inscreve-se nesse âmbito a política, que tem sido até agora adotada, de confinar as pessoas, sobretudo as mais vulneráveis, para evitar o colapso dos serviços de saúde, em detrimento de uma lógica utilitarista (mesmo que cientificamente fundamentada) de procurar a imunidade de grupo sacrificando os mais fracos. Mas essa discussão de estratégias e políticas de saúde também não pertence ao espaço livre do Direito.

Propagação de doença contagiosa, por Maria Fernanda Palma

Não é permitida a reprodução do artigo sem autorização da autora 

[powerpoint apresentado no II Curso Pós-Graduado de Atualização sobre Direito da Medicina e Justiça Penal, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa]

O problema penal

Artigo 283.º do Código Penal

Questões:

• Qual o bem jurídico?
• Em que espécie de comportamentos consiste a conduta típica?
 
Resposta?
• Bem jurídico complexo
• Natureza pessoal (vida e integridade física)
+ natureza coletiva (segurança da saúde pública)

   Problema:

• O crime de propagação protege logo bens de titularidade individual ou pretende ser antes a proteção da segurança da saúde coletiva?

Consequências das duas hipóteses

Hipótese 1:     A lesão ou perigo de lesão dá-se logo com a transmissão para uma única pessoa
Hipótese 2:  A lesão ou perigo de lesão tem de ser múltipla

Solução sistematicamente adequada:

• O tipo penal pretende abarcar um conjunto amplo de comportamentos desde a o contágio direto pessoa a pessoa até ao contágio múltiplo e indiferenciado.
 
• É suficiente que apenas uma pessoa seja vítima do contágio e que nem sequer haja probabilidade de disseminação.
 
• O que está em causa é o controle de um poder social real de transmitir uma doença. É esse poder específico por ação ou até por omissão que extravasa a competência organizacional (Jakobs)da esfera própria e interfere com a alheia que é o objeto jurídico do tipo legal de crime.
 

Crítica a Damião Cunha no Código Conimbricense (p. 1006 e ss):

• Não considera o sentido e contexto social da propagação de doença contagiosa(o controle da saúde alheia pelo meio da propagação)
• Desenha o bem jurídico a partir das palavras da lei fora do contexto semântico: Propagar é difundir , transmitir e dominar o poder de transmissão por meios que não são os típicos de homicídio ou ofensas corporais
• Aceita soluções valorativamente incongruentes ou sem a devida diferenciação(multiplica os entes sem justificação)
• Assim, para D. Cunha não haveria crime de propagação se o agente transmitir uma doença a uma só pessoa num contexto em que outras pessoas não poderiam ser
 
Robinson Crusoe nunca poderia propagar uma doença contagiosa?

No entanto, independentemente de outros crimes contra as pessoas, por ação ou omissão, o seu comportamento poderia caber no artigo 283º: usa o seu controle sobre a transmissão de doenças dolosa ou negligentemente

Os argumentos de D. Cunha:

• Argumento literal -interpretação de propagar ?
• Argumento da ratio legis?
• Argumento sistemático?
 

Os argumentos de F. Palma:

• A expressão propagar não reclama um resultado coletivo, mas  um modo de atuação. Por outro lado o tipo exige apenas a criação de um perigo para a vida ou integridade física de outrem
 

Argumento da ratio legis ?

• Se a ratio legis é como diz D. Cunha o perigo para a sociedade, tal perigo não depende do número de atingidos mas de um poder de controle disponível pelo agente sobre a esfera de outros

Argumento sistemático ?

• A propagação tal como outros crimes de perigo depende de uma especial perigosidade da ação tal como acontece nas outras alíneas do mesmo preceito
 
 
Imputação objetiva do crime de perigo concreto
 
• Quando é que se pode entender que o perigo para a vida ou saúde decorre (foi criado pela) da propagação?
 
• 1- A decorrência significa causalidade adequada , no sentido de previsibilidade ex ante da criação de um perigo verificável ex post?
• 2- Nos termos da teoria do risco , trata-se da criação ou aumento do risco concretizável ex post de que um perigo de dano para a vida ou saúde se verifique?
 
• Criação ou aumento do risco do perigo verificável ex post?
 
• O que significa criar um risco de perigo através da propagação? Pressupõe levar a contrair uma doença, a mera contaminação com o agente infeccioso ou até apenas o contacto com o mesmo?
 
• Segundo a lógica da  teoria do risco, trata-se de criar ou aumentar o  perigo de um perigo e não diretamente do resultado(substitui-se o perigo do resultado pelo perigo do perigo)
• Assim, a imputação objetiva é bastante antecipada relativamente ao resultado.

Imputação objetiva

• A criação do perigo do perigo em que é que consiste?

• Para Roxin (Strafrecht , Allgemeiner Teil), 3ª ed., p.354), citando jurisprudência germânica, a imputação no tipo objetivo nos crimes de perigo concreto(Gefährdungsdelikte)pressupõe que a ação típica afetou intensamente a segurança de uma pessoa ou coisa de modo que só por acaso é que o bem jurídico não é lesado.

• O seu critério parece ser o da inevitabilidade do dano sem medidas imprevisíveis

• A imputação objetiva no crime de propagação não pode exigir já a verificação da doença que ultrapassa o perigo nem se bastar com a mera disponibilidade por um hospital de um produto infetado ou até  um contacto da potencial vítima com o agente infeccioso.•Deve exigir ,antes,uma fase de inevitabilidade do curso infeccioso, que em geral exigirá um contacto e um curso previsível

• No caso célebre dos hemofílicos , o Tribunal da Relação de Lisboa , considerou consumado o crime de perigo com a disponibilização hospitalar do produto infetado•Na tese da defesa: «O crime de propagação de doença contagiosa é um crime de perigo concreto o que faz dele, por isso mesmo, um crime de resultado; 
Assim, no caso concreto, o momento da consumação deu-se em 18 de Julho de 1986, isto é, no momento em que entraram nos Hospitais Civis de Lisboa 500 frascos do lote n.º 810536 (Factor VIII) e que estariam eventualmente infectados com o vírus da Síndrome da lmunodeficiência Adquirida»

As configurações:

  1. Dolo de propagação + criação dolosa do perigo

2. Dolo de propagação + negligência de perigo

3. Negligência de propagação + negligência de perigo

Exemplos:

  1. disponibilização de sangue contaminado com representação e aceitação desse facto e indiferença pela criação do perigo

2. disponibilização de sangue contaminado com representação e aceitação desse facto, mas convicção de que ninguém ficará sujeito ao perigo

3. disponibilização por falta de controle adequado de sangue contaminado

Problemas de imputação objetiva na transmissão da sida

• O modo de atuação da doença , atacando o sistema imunitário, e não provocando diretamente lesões permite concluir pela imputação objetiva  da morte ou apenas do perigo?

• A resposta é afirmativa quanto ao dano, enquanto não existirem meios normalmente eficazes para impedir a evolução da doença.

• Quem é condenado à morte , sendo executada a sentença dali a anos,não deixa de morrer em consequência dessa condenação anterior

• Argumento da inevitabilidade

• Se morrer por outras causas, completamente estranhas, haverá interrupção do nexo causal.

Problemas de imputação subjetiva na transmissão do vírus da sida

1- Apesar da probabilidade de transmissão ser, em certos casos, baixa não deixa de existir dolo de propagação tal como nas situações de dolo direto com baixa probabilidade de êxito da ação

2- O dolo de propagação só é irrelevante quando houver nos casos de perigo negligenciável

Questões de direito de necessidade em face de um perigo de transmissão de doença contagiosa 

• Justificação da violação do segredo médico no crime de transmissão?

Violação do segredo médico:
Respostas possíveis

1- Invocação do dever de segredo absoluto em função da relação de confiança e do bem público(posição da ordem dos médicos no acórdão do tribunal de torres vedras em 2007)

2- violação do segredo com invocação em concreto do direito de necessidade(artigo 34º)

3- dever de violar o segredo em casos de perigo iminente e muito grave insuperável de outro modo(artigo 135º,nº3, do Código de Processo Penal, posição do acórdão de 2007 do tribunal da Relação de Lisboa, no caso de torres vedras)

Internamento compulsivo de doentes infecto-contagiosos?

• Fundamento Constitucional?

• Fundamento legal?

• Deve ser fundamentalmente entendido como um ato médico, destinado ao tratamento do paciente

• Nessa base restritiva pode ser justificado por direito de necessidade de cariz público, na medida em que o portador da doença  não é instrumentalizado, mas considerado um fim em si mesmo, não se violando a alínea c) do artigo 34º do Código Penal

Internamento e discriminação

Os Aleijados, 1568 – Pieter

Este pequeno painel sempre foi conhecido como Os Aleijados mas, recentemente, demonstrou-se que os homens são, na verdade, leprosos

Debate sobre internamento compulsivo de doente contagioso

• em 2005, o Tribunal da Relação do Porto decidiu que “é legal o internamento compulsivo de quem, padecendo de tuberculose pulmonar, recusa tratar-se e deambula pelas vias públicas, podendo assim afectar outras pessoas.”

Argumentos pro e contra

Pro:

• ponderação de valores e de interesses

• Saúde pública

Contra:

• afastamento dos doentes do tratamento

• Discriminação de certos doentes

Professora Doutora Maria Fernanda Palma

Não é permitida a reprodução do artigo sem autorização da autora 

“Comentários de emergência” à lei do perdão das penas, por Maria Fernanda Palma

Não é permitida a reprodução do artigo sem autorização da autora 

(I)

Do espírito da lei e dos seus problemas

Esta lei, aprovada ao abrigo da reserva relativa de competência da Assembleia da República (artigo 165º, nº 1, alínea c), da Constituição), contempla cinco espécies de medidas: um perdão genérico da Assembleia da República (2 anos), um indulto do Presidente da República, antecipação da liberdade condicional pelo Tribunal de Execução de Penas (6 meses), concessão de saídas administrativas pelo Diretor-Geral de Reinserção Social e dos Serviços Prisionais, com possibilidade de delegação nos Diretores-Gerais Adjuntos (até 45 dias, renováveis) e reexame dos pressupostos da prisão preventiva pelo Juiz de Instrução. Preside à lei um sentido de emergência humanitária e de saúde pública, constitucionalmente justificado. No entanto, suscita alguns problemas:

  1. Na perspetiva político-criminal e político-social, a lei é equívoca, pois mistura duas lógicas difíceis de compatibilizar no que se refere aos crimes excetuados: por um lado, a defesa da sociedade e a prevenção especial, na perspetiva da perigosidade dos agentes em conexão com os crimes mais violentos e intoleráveis contra as pessoas; por outro lado, uma lógica retributiva e de prevenção geral positiva, no que se refere aos crimes de titulares de cargos públicos, de elementos de forças ou serviços de segurança e de magistrados. Na realidade, na perspetiva da prevenção especial, muitos destes últimos casos poderiam não vir a significar perturbação social ou perigosidade concreta. 
  2. Apesar de ser uma lei de perdão em estado de emergência, esta lei não está isenta de uma apreciação de constitucionalidade, à luz dos princípios da legalidade, da necessidade da pena, da culpa e da igualdade. Ora, o legislador não justifica senão vagamente as suas ponderações, nomeadamente o equilíbrio difícil de sustentar entre a prevenção e a retribuição, isto é, prevenção apenas para os crimes contra as pessoas e retribuição para os crimes de certas categorias de pessoas. Por outro lado, não refere dados empíricos que deveriam estar disponíveis sobre o tipo e número de condenados por espécie de penas perdoadas, não se tendo acesso à avaliação técnica que foi feita.
  3. No projeto tinham ficado inexplicavelmente de fora das exceções ao regime do perdão genérico e do indulto os crimes de ofensas corporais graves, que foram entretanto acrescentados na versão final do diploma.
  4.  Sendo excetuados os crimes cometidos por agentes do Estado no exercício das suas funções (membros das polícias, das Forças de Segurança e das Forças Armadas, funcionários e guardas dos serviços prisionais, titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos e magistrados judiciais ou do Ministério Público), o projeto também omitia os crimes praticados contra eles. No entanto, o acrescentamento posterior desses crimes veio, pela sua localização sistemática (artigo 1º, nº 2), gerar uma incongruência: não se lhes aplica, no seu todo, o regime da lei, o que impede também a antecipação da liberdade condicional e a concessão de saídas administrativas. Todavia, estes regimes são aplicáveis a todos os restantes crimes excetuados pela lei quanto ao perdão genérico e ao indulto presidencial, não fazendo qualquer sentido a discriminação.
  5. O elenco de crimes que caem fora do âmbito do perdão genérico e do indulto apresenta “lacunas” incompreensíveis, que, de acordo com o princípio da legalidade penal (artigo 29º da Constituição), não poderão ser integradas por analogia. É o caso, designadamente, dos crimes de terrorismo e de organização terrorista.
  6. Outra omissão relevante da lei diz respeito à pena de multa, suscitando um problema de igualdade. Os condenados perdoados a quem se poderia ter aplicado a multa, mas não foi por razões de prevenção, serão beneficiados relativamente aos que sofreram uma multa pela prática de crimes idênticos.
  7. A lei também não refere quaisquer medidas de acompanhamento pela reinserção social, o que subtrai os condenados a uma ressocialização necessária numa situação particularmente difícil. Prevê-se, no entanto, que o perdão fica sujeito a uma condição resolutiva, no caso de o beneficiado cometer um crime doloso no prazo de um ano.

Os fundamentos do Indulto Presidencial

Sendo a lei de perdão enformada por uma lógica de generalidade limitada por exceções, o indulto também o é, por expressa remissão legal, o que pode frustrar parcialmente os objetivos humanitários que procura atingir. Também aí uma lógica de exceção retributiva condicionará uma figura que poderia ser mais abrangente para pessoas especialmente vulneráveis. Além disso, uma lei que submete o instituto do indulto e da comutação a uma lógica de amnistia e perdão genérico acaba por contrariar as finalidades daquele instituto e restringir os poderes presidenciais.

As saídas administrativas e a liberdade condicional

Por decisão do Diretor-Geral da dos Serviços Prisionais, podem ser concedidas “saídas administrativas” por um período máximo de 45 dias. Não se trata de saídas judiciais da competência de juiz (Tribunal de execução de Penas), mas sim de medidas de natureza administrativa, renováveis, que poderão ser seguidas uma antecipação da liberdade condicional, pelo período máximo de seis meses, essa já da competência de juiz.  Estas saídas estão sujeitas ao regime previsto no artigo 78.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade para as saídas administrativas de curta duração, que são da competência dos diretores de estabelecimentos prisionais e pressupõem que o recluso já tenha beneficiado de uma saída jurisdicional. Contudo, a sua longa duração, o caráter renovável e a articulação com a liberdade condicional antecipada aconselhariam a que fosse uma medida jurisdicional (o que não terá acontecido por razões de “praticabilidade”).

O reexame dos pressupostos da prisão preventiva

Prevê-se ainda (no artigo 7º) que o juiz deve proceder ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva, independentemente do decurso dos três meses previsto no artigo 213.º do Código de Processo Penal. Continua a exigir-se uma ponderação que tenha em conta, designadamente, a “efetiva” subsistência dos requisitos gerais previstos no artigo 204.º daquele Código. Esta medida aplica-se a todos os crimes e a todos os agentes, sem exceção (a lei não faz aqui nenhuma restrição). Uma eventual redução teleológica do regime de reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou uma aplicação analógica das restrições previstas para ao perdão e o indulto violariam claramente o princípio da legalidade penal (artigo 29º da Constituição).

Sobre esta questão, cfr. Albergaria, P. , Revista Julgar online, Abril, 2, 2020.

Professora Doutora Maria Fernanda Palma

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