Diferentes soluções legislativas entre países europeus na incriminação da propagação de doença contagiosa, por Catarina Abegão Alves

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O Código Penal espanhol previa no anterior artigo 549.º, introduzido pelo Código Penal de 1928, o tipo incriminador de propagação maliciosa de doença em geral[1], enquanto um crime contra a saúde pública. O artigo 538.º  incriminava por sua vez o contágio venério[2], enquanto um crime contra a vida, a integridade corporal e a saúde. A reforma do Código Penal espanhol em 1958 veio introduzir o tipo incriminador de propagação maliciosa de doença no artigo 348.º bis[3]. Mas no novo Código Penal espanhol de 1995 o legislador eliminou esta incriminação do catálogo dos crimes contra a vida, contra a saúde ou contra a saúde pública[4]. Deste modo, a propagação de doença contagiosa não se encontra tipificada no Código Penal espanhol, conforme foi recentemente reconhecido de forma clara numa sentença do Supremo Tribunal espanhol[5].

No Reino Unido também não existe especificamente o tipo incriminador de propagação de doença, pelo que esta conduta poderá caber no tipo incriminador de ofensa à integridade física grave, previsto, no caso inglês, nas Secções 18 (transmissão intencional) e 20 (recklessness) do Offences against the Person Act, de 1861. Em caso de transmissão intencional a pena aplicada pode ser uma pena de prisão perpétua. Mas recentemente foi aprovado um ato legislativo – The Health Protection (Coronavirus) Regulations 2020[6] – que prevê sanções criminais na sua Secção 15, no caso de se verificarem as condições A) existência de uma dúvida razoável de que a pessoa possa estar ou possa vir a estar infetada ou contaminada com o coronavírus e exista o risco de que possa contaminar outras pessoas ou B) a pessoa tenha chegado de um país fora da Inglaterra e tenha regressado nos últimos 14 dias de uma área infetada.

Assim, são consideradas criminal offenses as seguintes condutas:

a) alguém não cumpre, sem desculpa razoável, uma restrição ou requisito impostos de detenção para triagem, avaliação e aplicação de restrições ou outros requisitos;

b) alguém não cumpre, sem desculpa razoável, uma restrição ou requisito que necessitam de ser aplicados para eliminar ou reduzir o risco de contágio, e que podem ser aplicados após a realização de uma triagem para informar uma avaliação considerada necessária e proporcional para aferir se existe ou pode vir a existir o risco de contagiar outros;

c) alguém não cumpre, sem desculpa razoável, uma restrição ou requisitos adicionais impostos para eliminar ou substituir o risco de contágio de terceiros;

d) alguém não cumpre, sem desculpa razoável, a restrição ou requisito adicional, no caso de detenção, isolamento de pessoas suspeitas de estarem infetadas com o coronavírus ou aplicação de restrição ou requisito adicionais (impostos para eliminar ou substituir o risco de contágio de terceiro, de realização de uma triagem para informar uma avaliação considerada necessária e proporcional para eliminar ou substituir o risco de contágio de terceiros);

f) alguém não cumpre, sem desculpa razoável, a restrição ou requisito adicional, no caso de detenção de pessoa que reúna as condições A ou B, de deslocação para um outro local adequado;

e) alguém evade-se ou tenta evadir-se em caso de detenção para triagem para informar uma avaliação ou em caso de eventual aplicação de restrições com vista à eliminação ou redução do risco de contágio.

Para estes casos está prevista apenas a aplicação de uma pena de multa, que não pode exceder £1,000.

Estas incriminações, apesar de numa primeira análise terem na sua génese a incriminação da conduta de desobediência a uma ordem emanada de uma autoridade ou funcionários competentes, certo é que a sua construção assenta igualmente na existência de um perigo de contágio com o coronavírus, apesar de não incriminarem diretamente a conduta de propagação de doença.

O legislador alemão, na Lei para prevenção e combate às doenças infeciosas pelo homem (Gesetz zur Verhütung und Bekämpfung von Infektionskrankheiten beim Menschen), estabelece no § 75 Abs. 3 uma pena de prisão de 3 meses a 5 anos para aquele que propague uma das doenças referidas no § 6 da referida Lei, como o botulismo ou a cólera, ou um micróbio patogénico incluído no § 7 da referida Lei, como o vírus do ébola, a menos que esteja prevista uma punição mais grave noutra disposição legal. Este crime só pode ser cometido a título doloso, segundo uma leitura a contrario do Abs. 4 do § 75 da Lei. Os §§ 6 e 7 incluem catálogos taxativos de doenças e de micróbios patogénicos, nos quais não se incluem o coronavírus, nem a doença Covid-19. Pelo que, no caso de alguém infetado contagiar uma outra pessoa com o coronavírus essa conduta integra a factualidade objetiva do tipo de ofensas corporais, previsto no § 223 do StGB. Segundo Thomas Fischer, ainda que o contágio com a doença não se traduza em maus-tratos corporais, implicará sempre um dano na saúde, mesmo que a pessoa não adoeça com gravidade, porque a pessoa será sempre ela própria um foco de infeção. Se o agente atuar dolosamente poderá vir a ser punido com uma pena de prisão até 5 anos ou com uma pena de multa. Se o agente souber que com a sua conduta poderá criar um perigo para a vida da pessoa que está a contagiar poderá estar a cometer o crime de ofensas corporais perigosas, que prevê uma pena de prisão de 6 meses a 10 anos no § 224 Abs. 1 Nr. 1, e em casos menos graves está prevista uma pena de prisão de 3 meses a 5 anos. O contágio pode, todavia, ocorrer a título negligente e, nesse caso, o agente poderá ser punido pelo crime de ofensa à integridade física negligente, previsto no § 229 do StGB, que comina uma pena até 3 anos ou uma pena de multa. O § 227 do StGB prevê uma agravação do crime de ofensas corporais pelo resultado morte, mas este tipo agravado pelo resultado só será aplicado caso o agente tenha agido pelo menos a título negligente quanto ao resultado mais grave, pois o StGB tem uma solução no § 18 igual à do artigo 18.º do Código Penal português. Ora, se o agente tiver agido dolosamente quanto ao resultado morte decorrente da conduta menos grave de contágio, será punido autonomamente pelo crime de homicídio doloso[7].

O artigo 438.º do Código Penal italiano incrimina a conduta dolosa do agente que cause uma epidemia através da propagação de germes ou de um agente patogénico. A pena prevista para esta conduta é a pena perpétua. Segundo alguns entendimentos, caso o agente aja com intenção de infetar outras pessoas e ajude a disseminar a doença, desde que esta seja altamente contagiosa, a sua conduta integrará este tipo incriminador, caso o agente tenha consciência da gravidade da sua conduta e da possibilidade de esta poder vir a provocar a morte de outras pessoas[8].

Em França não está tipificada especificamente a conduta de propagação de doença contagiosa, apesar de em 1991 o Senado ter discutido um projeto de lei de alteração do Código Penal, que previa a introdução no Código Penal de um crime, punido com uma pena de prisão até 3 anos e multa, no caso de uma pessoa consciente e informada que provocasse a disseminação de uma doença transmissível epidemicamente com o seu comportamento imprudente ou negligente[9]. A jurisprudência tem, contudo, aplicado em alguns casos de contágio com o vírus da SIDA o tipo incriminador previsto no artigo 222-15 do Código Penal, que prevê a incriminação da administração de substâncias prejudicais que atentem contra a integridade física ou psíquica de outra pessoa[10].

O Código Penal português tem uma clara influência do Código Penal austríaco, que no § 178 do StGB incrimina, com uma pena de prisão até 3 anos, a conduta dolosa adequada à criação de um perigo de propagação de doença humana contagiosa, caso a doença em causa, pela sua natureza, esteja sujeita a notificações limitadas e a requisitos de reportamento. A conduta negligente é punível no § 179 com uma pena até 1 ano ou com pena de multa.

Após esta primeira apresentação das soluções do Direito estrangeiro, podem ser delineadas algumas conclusões iniciais.

O problema de causalidade e de prova do foco de contágio mantém-se nos casos em que existe um específico crime de propagação de doença contagiosa ou nos casos em que é aplicável o tipo incriminador de ofensa à integridade física, ficando em qualquer dos casos ressalvada a possibilidade de punição por tentativa[11], caso se comprove a existência de atos de execução que demonstrem um concreto desvalor de ação.

Mas há uma diferença substancial que permite afirmar a imputação objetiva mais facilmente no caso do artigo 283º do CP português, em comparação com as soluções que aplicam o tipo de ofensa à integridade física. No primeiro caso basta que se comprove que a conduta de propagação de doença contagiosa criou um perigo concreto para a vida ou para a integridade física grave de outrem, não sendo necessário sequer que ocorra uma efetiva contaminação[12]. Nestes casos, basta a criação ou aumento do  perigo de um perigo e não diretamente do resultado (substituindo-se o perigo do resultado pelo perigo do perigo), antecipando-se bastante a imputação objetiva em relação ao resultado, ainda que se exija “uma fase de inevitabilidade do curso infecioso, que em geral exigirá um contacto e um curso previsível” [13]. Nas soluções legislativas que aplicam o tipo de ofensa à integridade física, para que esteja preenchida a tipicidade objetiva ter-se-á de verificar, para além da criação do risco proibido, a ocorrência de um dano e a conexão de risco entre o dano e a conduta do agente. Assim, caso se aplique o tipo de ofensa à integridade física será mais difícil aplicar o crime na forma consumada, ficando a punição pelo crime tentado dependente do regime de punição da tentativa previsto em cada específico Código Penal. No caso alemão, o § 223 Abs. 2 do StGB prevê especificamente a punição do crime de ofensa à integridade física na forma tentada.

[Artigo em desenvolvimento]

[1] “Al que maliciosamente propagare una enfermedad peligrosa y transmisible a las personas”.

[2] “Quien sabiendo que se encuentra atacado de una enfermedad sexual en su periodo contagioso infectare a otro por vía intersexual o de otra manera será castigado con la pena de 2 meses y un día a 1 año de prisión. Si el hecho se realizase entre cónyuges solamente podrá ser perseguido a instancia de parte”.

[3] “El que maliciosamente propagare una enfermedad transmisible a las personas serácastigado con la pena de prisión menor (seis meses a seis años). No obstante, los Tribunales, teniendo en cuenta el grado de perversidad del delincuente, la finalidad perseguida o el peligro que la enfermedad entrañare podrá imponer la pena superior inmediata (seis años a doce), sin perjuicio de castigar el hecho como corresponda si constituyere delito más grave”.

[4] Cf. Luis Arroyo Zapatero, “La supresion del delito de propagacion maliciosa de enfermedades y el debate sobre la posible incriminacion de las conductas que comportan riesgo de transmision del sida”, DS: Derecho y salud, vol. 4, n.º 1 (1996), págs. 210-218

[5] https://www.elmundo.es/espana/2020/04/01/5e8329c1fc6c834f638b45e5.html: No están recogidos en la legislación española aquellos “delitos de peligro potencial en atención al riesgo de expansión de de una infección o de una enfermedad”.

[6] http://www.legislation.gov.uk/uksi/2020/129/contents/made

[7] Thomas Fischer, “Virus strafbar!”, Der Spiegel, de 9.03.2020 (https://www.spiegel.de/panorama/justiz/coronavirus-und-das-strafrecht-virus-strafbar-kolumne-a-9347f5da-d295-4a67-90b4-3e0362f77089)

[8] https://www.laleggepertutti.it/374634_coronavirus-ergastolo-per-chi-diffonde-lepidemia

[9] https://www.senat.fr/lc/lc151/lc151_mono.html

[10] https://www.lefigaro.fr/actualite-france/2014/09/16/01016-20140916ARTFIG00123-un-malade-du-sida-comparait-pour-avoir-transmis-sciemment-le-virus.php

[11] Thomas Fischer, “Virus strafbar!”, Der Spiegel, de 9.03.2020.

[12] Damião da Cunha, “Comentário ao artigo 283.º do Código Penal”, Comentário Conimbricense do Código Penal (dir.: Jorge de Figueiredo Dias), vol. II, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 1009.

[13] Maria Fernanda Palma, “Propagação de doença contagiosa”, artigo publicado no blog Covid-19, Direito Penal e Filosofia do Direito, em 10 de abril de 2020.