Crimes desobedientes – análise da base legal para as detenções por desobediência, por António Brito Neves

O autor autoriza a reprodução deste texto, desde que devidamente citado.

  De acordo com as últimas notícias, o Ministério da Administração Interna informa que foram já detidas mais de 80 pessoas por desobediência no terceiro período do estado de emergência, que termina a 2 de Maio. A estas somam-se 108 detenções realizadas no primeiro período, e 184 no segundo. Os números incluem a desobediência à obrigação de confinamento, ao dever geral de recolhimento domiciliário, e ao encerramento de instalações e estabelecimentos.

  Qual a base legal para estes procedimentos?

  O Governo procedeu à execução da declaração do estado de emergência, efectuada pelo Presidente da República, por meio do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de Março. Quanto ao confinamento obrigatório e violação do mesmo, dispõe o art. 3.º deste diploma:

Artigo 3.º

Confinamento obrigatório

  1 — Ficam em confinamento obrigatório, em estabelecimento de saúde ou no respetivo domicílio:

  a) Os doentes com COVID-19 e os infetados com SARS-Cov2;

  b) Os cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa.

  2 — A violação da obrigação de confinamento, nos casos previstos no número anterior, constitui crime de desobediência.

  No que toca ao encerramento de instalações e estabelecimentos, ele é determinado pelo art. 7.º, que remete para o anexo I, parte integrante do decreto.

  Ainda pertinente para este âmbito, temos a seguinte disposição:

Artigo 32.º

Fiscalização

  1 — Compete às forças e serviços de segurança fiscalizar o cumprimento do disposto no presente decreto, mediante:

  a) O encerramento dos estabelecimentos e fazendo cessar as atividades previstas no anexo I ao presente decreto;

  b) A emanação das ordens legítimas, nos termos do presente decreto, a cominação e a participação por crime de desobediência, nos termos e para os efeitos do artigo 348.º do Código Penal, por violação do disposto nos artigos 7.º a 9.º do presente decreto e do confinamento obrigatório de quem a ele esteja sujeito nos termos do artigo 3.º, bem como a condução ao respetivo domicílio;

  c) O aconselhamento da não concentração de pessoas na via pública;

  d) A recomendação a todos os cidadãos do cumprimento do dever geral do recolhimento domiciliário, nos termos e com as exceções previstas no artigo 5.º

  (…).

  Estes textos devem ser conjugados com o art. 348.º do Código Penal (CP), que dispõe:

Artigo 348.º

Desobediência

  1 – Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:

  a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou

  b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.

  2 – A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada.

  A prorrogação do estado de emergência foi regulamentada pelo Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de Abril. Para o que nos interessa, o art. 3.º não sofreu alteração de relevo, e o texto do art. 7.º passou a constar do art. 9.º Quanto à fiscalização, dispõe o art. 43.º:

Artigo 43.º

Fiscalização

  1 — Compete às forças e serviços de segurança e à polícia municipal fiscalizar o cumprimento do disposto no presente decreto, mediante:

  a) A sensibilização da comunidade quanto ao dever geral de recolhimento[;]

  b) O encerramento dos estabelecimentos e a cessação das atividades previstas no anexo I ao presente decreto;

  c) A emanação das ordens legítimas, nos termos do presente decreto, designadamente para recolhimento ao respetivo domicílio;

  d) A cominação e a participação por crime de desobediência, nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal, bem como do artigo 7.º da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, por violação do disposto nos artigos 6.º, 9.º a 11.º do presente decreto, bem como do confinamento obrigatório de quem a ele esteja sujeito nos termos do artigo 3.º;

  e) O aconselhamento da não concentração de pessoas na via pública e a dispersão das concentrações superiores a cinco pessoas, salvo se pertencerem ao mesmo agregado familiar;

  f) A recomendação a todos os cidadãos do cumprimento do dever geral do recolhimento domiciliário, nos termos e com as exceções previstas no artigo 5.º

  (…).

  Por fim, a segunda prorrogação do estado emergência (regulamentada pelo Decreto n.º 2-C/2020, de 17 de Abril) deixou intocados os arts. 3.º e 9.º, bem como, no essencial, o texto do art. 43.º, n.º 1, que passou, no entanto, a constar do art. 46.º, n.º 1.

  No que tange à violação do confinamento obrigatório e do encerramento de estabelecimentos, em face do art. 29.º, n.º 1 – do qual resulta o princípio da legalidade – e do art. 165.º, n.º 1, al. c) – que consagra a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República para a definição dos crimes, penas e respectivos pressupostos –, ambos da Constituição (CRP), é duvidoso que o quadro legislativo apresentado ofereça base de legitimidade aos procedimentos em questão. Com efeito, na falta de autorização legislativa, as disposições referidas e transcritas não lhes proporcionam cobertura legal. A situação agrava-se quando notamos que os diplomas em análise são decretos, não decretos-leis [v. art. 198.º, n.º 1, al. b), da CRP], pelo que devemos equacionar não só a inconstitucionalidade orgânica daquelas normas como também a formal[1].

  O propósito do legislador terá sido o de fixar as ordens legítimas no seu conteúdo, bem como as autoridades competentes para as fazer cumprir, valendo-se do entendimento de que o efeito criminalizador se estriba no art. 348.º, n.º 1, al. a), do CP. Não cremos, todavia, que a perspectiva mereça acolhimento[2].

  A ideia de que a criminalização assenta essencialmente no art. 348.º, constando das normas que discutimos aspectos colaterais insignificantes, ou sem relevo suficiente para valerem em relação a eles as exigências do princípio da legalidade, pressupõe, em primeiro lugar, que a criminalização visa a pura desobediência, com independência do conteúdo do comando a que cabe obedecer. Neste sentido e em segundo lugar, a “legitimidade” da ordem ou mandado funcionaria como mero pressuposto formal equivalente à competência da autoridade ou funcionário para os comunicar. Na regulamentação do estado de emergência, os decretos não trariam, portanto, qualquer inovação ou complemento de conteúdo importante para a aplicação do art. 348.º, mas somente a concretização situacional de condições prévias necessárias à punição nos termos deste.

  Mesmo deixando de lado os problemas de constitucionalidade da criminalização da mera desobediência para lá de casos como os que já constam do art. 347.º do CP, rejeitamos este modo de ver as coisas.

  Para efeitos de aplicação da al. a) do n.º 1 do art. 348.º, a “disposição legal” para cumprimento da qual aparecem a ordem ou mandado legítimos tem de ser norma penal respeitadora dos ditames do princípio da legalidade, ou seja, lei da Assembleia ou decreto-lei autorizado. Destarte, não basta que se trate de diploma cumpridor dos requisitos formais e de competência para ele previstos, como pode suceder com qualquer decreto, regulamento ou portaria, sob pena de se dar azo a que se faça matéria criminal de regulações e disciplinas carentes da correspondente dignidade.

  Pode contra isto tentar remir-se a regulação aventando que se o conteúdo normativo em causa não tiver dignidade penal, deixará de corresponder à “disposição legal” referida no art. 348.º, de modo que a ordem sempre será ilegítima. Todavia, além das incertezas que tal entendimento é passível de gerar, o princípio da legalidade não está limitado nesses termos: se, v. g., o homicídio fosse criminalizado por portaria, não deixaria de haver inconstitucionalidade orgânica e formal, por mais que se argumentasse com a dignidade punitiva dos comportamentos visados e com a necessidade de proteger o bem vida recorrendo à punição criminal. Assim, por muito válidas que se apresentem as razões para punir a desobediência em causa, os mandamentos da legalidade mantêm a força habitual.

  Em suma, o entendimento que subjaz aos propósitos do Governo é inadmissível, por se traduzir em abrir a porta a qualquer criminalização que o legislador pretenda realizar sem respeitar o princípio da legalidade, bondando, para concretizar tal pretensão, que o faça por via indirecta: querendo punir dado comportamento por meio de decreto, bastar-lhe-á que nesse decreto preveja como crime de desobediência a recusa, perante as autoridades, em adoptar o comportamento em questão, remetendo depois para (a moldura penal d)o art. 348.º Por não poder ser assim, a disposição legal referida no art. 348.º tem de ser lei da Assembleia da República ou decreto-lei com autorização legislativa. Não se respeitando este ditame no caso que analisamos, as normas são inconstitucionais.

  A situação agrava-se quando consideramos as detenções por crime de desobediência ao dever geral de recolhimento domiciliário. Neste âmbito, já se convoca a al. b) do art. 348.º, n.º 1.

  Deixando também aqui de lado as dúvidas de constitucionalidade que esta disposição suscita ab initio, estamos perante caso em que a autoridade ou o funcionário podem, “na ausência de disposição legal”, fazer a cominação da pena por desobediência?

  Tem sido comummente entendido que a disposição legal referida nesta al. b) não tem de consistir em norma incriminatória, tratando-se antes de qualquer disposição legal[3]. Deste modo, se, por ex., o comportamento desobediente constitui contra-ordenação ou infracção disciplinar à luz de outro diploma, não pode tornar-se crime em resultado da cominação referida na al. b) do art. 348.º, n.º 1.

  Ainda que não se queira levar esta leitura a todas as consequências, no caso presente, ela parece conduzir à solução que os dados impõem. Com efeito, note-se que nos decretos que vimos referindo, o Governo optou por prever como crime de desobediência somente a violação da obrigação de confinamento, acrescentando depois a possibilidade de cominação por tal crime para o encerramento de instalações e estabelecimentos. Quanto ao dever geral de recolhimento domiciliário (sempre regulado no art. 5.º dos decretos), diferentemente, dispõe-se, como transcrito, que cabe às autoridades a “sensibilização da comunidade”, o “aconselhamento da não concentração de pessoas na via pública e a dispersão das concentrações superiores a cinco pessoas”, ou a “recomendação” do cumprimento daquele dever. Bem marcada fica a separação entre estas indicações e as dadas para os outros casos: se para esses se fala em crime de desobediência, já quanto ao dever geral de recolhimento, guarda-se silêncio de Télefo.

  Se bem vemos, temos de concluir que o quadro legal, pela diferenciação de orientações, não permite concluir pela criminalização do desrespeito pelo dever geral de recolhimento, tal como não permitiria se, por exemplo, punisse tal desrespeito com coima. Pelo que as detenções feitas com invocação da al. b) do art. 348.º, n.º 1 nos parecem feitas, em suma, sem base legal capaz de as validar.


[1] No sentido de haver inconstitucionalidade orgânica e formal, com atenção a outros pontos que aqui não consideraremos, v. Alexandre Au-Yong Oliveira, “O(s) crime(s) de desobediência no atual estado de emergência, em especial no domínio das restrições ao direito de deslocação e fixação – breves notas”, in CEJ, Estado de Emergência – COVID-19. Implicações na Justiça, CEJ: Lisboa, 2020 (pp. 425-444), pp. 425 e ss. (disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/outros/eb_Covid19.pdf – consult. 29/4/2020).

[2] Nem pode dizer-se que venha sendo muito acolhida pela doutrina e pela jurisprudência: vejam-se, a título ilustrativo, os acs. da Relação de Coimbra de 14/10/2009 (Elisa Sales), 25/1/2012 (Paulo Guerra) e 23/5/2012 (Brízida Martins), e da Relação de Évora de 24/3/2011 (Sénio Alves) e 7/5/2019 (Gilberto Cunha), todos adoptando a leitura que faz Cristina Líbano Monteiro, Anotação ao art. 348.º, in Jorge de Figueiredo Dias (dir.), Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, tomo III (Artigos 308.º a 386.º), Coimbra: Coimbra Editora, 2001 (pp. 349-359), p. 353, segundo a qual, não obstante a al. a) do art. 348.º fixar “as condições básicas do ilícito e a sua pena”, nela, “o crime de desobediência parece destinado a servir de norma auxiliar (…) a alguns preceitos de direito penal extravagante que incriminam um determinado comportamento desobediente”.

[3] V. os elementos referidos supra2 (no respeitante ao escrito de Líbano Monteiro, v. a p. 354).

Pandemia de deveres – Conflito de deveres em tempos de pandemia, por António Brito Neves

  O autor autoriza a reprodução deste texto, desde que devidamente citado.

  As situações dramáticas tradicionalmente apresentadas no âmbito académico para tratar os regimes do conflito de interesses parecem eivadas de ficção, saídas de mentes desocupadas, só comuns em tempos extraordinários.

  Os tempos extraordinários chegaram.

  Estado de necessidade e conflito de deveres são figuras de conflito de interesses. Começam por surgir no Código Penal (CP) como causas de justificação – nos arts. 34.º (Direito de necessidade) e 36.º, n.º 1 (Conflito de deveres). A lógica fundamentadora da exclusão da ilicitude é a mesma em ambos os casos: uma exigência de solidariedade conjugada com uma ponderação de interesses. Só um mandamento de solidariedade, como princípio constitucional implícito, explica que alguém não juridicamente responsável deva suportar uma lesão dos seus bens jurídicos, ou que estes sejam postos em perigo. Os limites para tal sacrifício são estabelecidos por referência à dimensão dos valores em comparação e à autonomia pessoal do sacrificado. Respeitados os termos destes regimes, não pode o agente ser impedido de actuar, ou forçado a agir de outro modo.

  Estado de necessidade e conflito de deveres são, não obstante, figuras autónomas, distinguindo-se nos seguintes termos: estão verificados os pressupostos do estado de necessidade quando o agente tenha de decidir entre adoptar o comportamento A e não adoptar o comportamento A. Diferentemente, em caso de conflito de deveres, a opção é feita entre adoptar o comportamento A e adoptar o comportamento B. Deve-se isto a que a acção praticada em estado de necessidade é uma da qual o agente, à partida, se devia abster, recebendo permissão especial para a praticar, enquanto no conflito de deveres, o agente deve optar entre diversos procedimentos que está, em princípio, obrigado a realizar. Neste último caso, portanto, o agente tem de actuar num sentido ou noutro, não podendo eximir-se de nenhum dos procedimentos. Deste modo, os critérios de afastamento da responsabilidade por conflito de deveres mostram-se adequados tanto em casos em que conflituem apenas deveres de acção como naqueles em que colidam deveres de acção e de omissão[1].

    A opção, seguida pela maioria da doutrina, de tratar este último tipo de conflitos convocando os critérios do estado de necessidade parece trair a pressuposição de que o dever de omitir prevalece sempre sobre o dever de agir – de tal modo que sobre o agente, quando muito, poderá recair uma permissão excepcional de cumprir o dever de agir e violar o dever de omitir, mas nunca uma obrigação de violar o dever de omitir para cumprir o dever de agir. Tal pressuposição, contudo, revela-se insustentável logo de um ponto de vista metodológico. Pois só uma ponderação que permita evidenciar o mérito problemático do caso concreto permitirá concluir pela validade do juízo de prevalência do dever de omitir sobre o dever de agir. Ainda que admitamos como um dos critérios dessa ponderação o de que a acção e a omissão, enquanto tais, possuem cargas axiológicas diversas (mais significativa a da acção que a da omissão), tal não é razão suficiente para dispensar aquela ponderação, que se destinará a confirmar se a diferença deve reflectir-se a final numa solução de preponderância do dever de omitir.

  A selecção dos critérios do estado de necessidade como adequados aos casos de conflito entre dever de acção e dever de omissão impossibilita a ponderação referida, porquanto lhe dá resposta (a da prevalência do dever de omitir) sem que a devida consideração da concreta problematicidade da situação chegue a ter lugar. A solução dada à partida é, por isso, uma falsa solução. Os critérios do conflito de deveres, pelo contrário, na medida em que orientam uma ponderação da vinculatividade dos deveres contendores no caso decidendo – obrigando assim à consideração atenta dos vários factores do caso que influem nessa ponderação –, deixam a resposta onde deve estar: depois da pergunta. E ainda que se conclua pela prevalência do dever de omitir, essa conclusão aparecerá no fim da ponderação e, então sim, será válida (tanto quanto o for a própria ponderação).

  Estas diatribes metodológicas não estão desprovidas de significado prático. Suponhamos, por exemplo, que o paciente A chega ao hospital com necessidade urgente de ser ligado à máquina que mantém vivo o paciente B; que só há outra máquina noutro hospital; que o paciente B pode ser transferido sem risco significativo, mas o paciente A não pode esperar mais. Atendendo aos deveres do médico responsável, parece razoável afirmar a prevalência do dever de acção (de ligar o paciente A à máquina) sobre a proibição traduzível num dever de omissão (de interromper o tratamento de B). As consequências práticas são óbvias: optando por não desligar a máquina e deixando A morrer, o médico terá omitido o cumprimento do dever prevalecente. Ele tinha o dever, não somente a permissão, de tratar A, de modo que a omissão pode ser tida como típica e ilícita, visto não estar justificada por conflito de deveres. Se, ao invés, pretendêssemos que a acção de interromper o tratamento de B estaria justificada por direito de necessidade, a punição da omissão correspondente não se compreenderia, pois traduziria a irrogação de uma pena à omissão de um comportamento permitido, não devido.

  Em situação de conflito de deveres – i. e., quando recaia sobre o agente (para o que nos interessa: o médico) mais que um dever, não lhe sendo possível cumprir todos, e não havendo cirtério legal de solução concreto –, rege o art. 36.º, tendo o médico de optar por escolher um dever que seja tão ou mais vinculante que o preterido.

    Os factores a ponderar na avaliação da vinculatividade dos deveres em conflito são, em grande parte, os mesmos que determinam a sensível superioridade do interesse exigida para a justificação por direito de necessidade no artigo 34.º, al. b). O valor dos bens jurídicos em causa serve de ponto de partida, merecendo prevalência, por exemplo, o dever de afastar um perigo para a vida sobre o dever de afastar um perigo não mortal para a saúde. A gravidade do dano e o grau de perigo de concretização do mesmo condicionam, no entanto, esta avaliação, podendo mesmo levar a que um bem em abstracto menos valioso prevaleça sobre o concorrente. É mister ainda não confundir os factores: o grau de perigo, a gravidade do perigo e a probabilidade de salvamento são pontos distintos, merecendo, portanto, atenção diferenciada.

  Quando a pesagem dos vários factores não induza à prevalência de nenhum dos deveres, o médico escolhe livremente qual vai cumprir. A liberdade de escolha implica que nestes casos, o médico pode decidir em função do critério que preferir, independentemente de este incluir motivações racistas, de inimizade ao paciente preterido, ou moralmente censuráveis por outro motivo.

  No processo de avaliação, há-de levar-se em conta a especificidade das situações em que estejam vidas em causa. Isto porque, como costuma dizer-se, este bem é imponderável quantitativa e qualitativamente. A imponderabilidade deriva da igualdade absoluta de valor entre vidas, que, para além de ter fundamentação cultural historicamente afirmada, é também premissa lógica da democracia. O médico não está obrigado a escolher um dever em vez de outro apenas porque aquele se destina a proteger maior número de vidas, ou pessoas com determinadas características (como a nacionalidade, a cor de pele, a idade, ou o peso). Se o médico optar, portanto, por salvar a vida de um paciente quando podia ter evitado a morte de outros dois, o seu comportamento não deixa de poder estar justificado por conflito de deveres, tal como se optar por salvar o idoso em vez da criança, o árabe em vez do europeu, etc.

  Esta liberdade de escolher quem vive e quem morre não deve valer nos mesmos termos, porém, para os casos de conflito entre dever de acção e dever de omissão, já que, por princípio, não é permitido ao médico criar ou potenciar um risco para o bem vida (exceptuando desde logo, naturalmente, situações em que esse risco esteja necessariamente envolvido no próprio tratamento). Assim, numa situação em que é impossível salvar a vida de todos os pacientes, pode o médico escolher acudir um e deixar o outro morrer, mas não pode, por norma, provocar a morte de um para salvar outro. A Ordem Jurídica não confere ao médico o papel de Destino (o poder de decidir quem vive quem morre) quando tal implique uma acção de causar a morte.

  Uma excepção que aqui pode ser admitida surge nos casos em que a pessoa a sacrificar está condenada à partida – casos habitualmente tratados no âmbito do estado de necessidade defensivo. Com efeito, aí, por um lado, o lucro com a observação da proibição de matar seria nulo (já que todos morreriam); por outro, o médico não está verdadeiramente a escolher o sacrificado como aquele que deve morrer (visto que ele já está condenado), mas apenas a salvar os restantes.

  Nas outras situações de conflito entre vidas – em que a única possibilidade é a de matar alguém para salvar os demais, mas ninguém está condenado à partida –, não se trata somente, note-se, de negar ao médico o direito a decidir que alguém deve morrer em lugar de outrem, mas também de reconhecer ao sacrificado – o escolhido para ser morto – o direito de se defender. Uma razão básica de igualdade impõe-nos reconhecer a todos os potenciais sacrificados igual direito de legítima defesa. Nenhum deles praticou uma agressão ilícita ou adoptou outro procedimento que justifique a perda deste direito.

  Como se concretizam estas orientações no quadro de pandemia actual, em que, como sucedeu em Itália, na falta de máquinas de ventilação, os médicos se podem ver obrigados a escolher entre pacientes?

  A imponderabilidade do bem vida deve preservar-se como base de quaisquer orientações de decisão, de modo que as directrizes de actuação que se entenda adequado adoptar para guiar o pessoal médico em situações de escolha não poderão perverter a ideia de que nenhuma vida tem mais valor que outra. A esta luz, mostra-se inaceitável a recomendação da SIAARTI (Società Italiana di Anestesia, Analgesia, Rianimazione e Terapia Intensiva), segundo a qual, na falta de recursos, estes deverão ser alocados em função, primeiramente, das probabilidades de sobrevivência, e, depois, do número de anos de vida salvos com o tratamento, admitindo mesmo a necessidade de introduzir limites de idade[2]. O valor da vida não se afere por referência ao tempo de duração remanescente para ela previsto, pelo que o princípio da igualdade proíbe erigir este factor como diferencial na ponderação.

  Não é de excluir, ainda assim, que a idade termine sendo factor que indirectamente condicione os termos do exame. Estando as probabilidades de sucesso do tratamento associadas à idade do paciente, como sucede nos casos de COVID-19, pode justificar-se em alguns casos (não em todos, porque não se trata de factor de verificação universal) preterir o paciente mais idoso em favor do mais novo – não, insista-se, porque a vida do idoso valha menos, mas sim porque a diferença de idades se pode traduzir em desproporção significativa nas hipóteses de sucesso (de modo que só terá relevância quando assim seja). Note-se também que este tipo de escolha só faz sentido em panoramas de necessidade extrema, em que o risco tem para ambos os pacientes dimensão significativa. Se, v. g., o paciente jovem tem 100% de hipóteses de sobreviver com tratamento de ventilação, e 90% sem ele, não há razão para impor a preferência por este doente em detrimento do idoso que tem, correspondentemente, 0% e 40% de hipóteses.

  Por fim, as especificidades apontadas para os casos de conflito entre dever de acção e dever de omissão carecem de maior esclarecimento.

  Os factores de ponderação apontados – sobretudo, a probabilidade de sucesso do tratamento – estão subordinados à distinção entre (dever de) acção e (dever de) omissão, não o inverso. Destarte, o cenário em que o médico está perante dois pacientes, A e B, que precisam de ser ligados a uma máquina, mas só há uma disponível, é diferente do cenário em que um dos pacientes, A, já está ligado à máquina quando B chega ao hospital. Com efeito, traduzindo-se a acção de desligar a máquina em interromper o processo de salvamento de A, ao menos enquanto pudermos descortinar nesta acção uma intromissão na esfera de domínio sobre os bens jurídicos de outrem, ou, se se preferir, no espaço de liberdade de decisão e supertintendência sobre os seus bens, ela terá de ser vista como mais desvaliosa que qualquer comportamento não passível de assumir este significado (como o de não fazer nada, ou o de interromper um processo de salvamento que ainda não atingiu a esfera da vítima).

  Distinções formuladas nestes termos trazem sempre consigo as preocupações de decidirmos em função do acaso, de contingências que parecem não ter importância em si mesmas: que A tenha chegado ao hospital antes de B pode dever-se a eventualidades tão irrisórias que nos obrigam a perguntar pela justiça de em resultado disso favorecermos a posição de um em face do outro[3]. Mas o acaso da origem não apaga as distorções no quadro final. A sorte que ligou A à máquina mais cedo não lhe reforça nenhum direito em abstracto. Mas a acção de desligar-lhe a máquina terá sempre o significado de perturbação do estado de coisas com base no qual se desenham as esferas de autonomia e liberdade de cada um, mais concretamente, de intromissão no espaço de outrem[4]. Por princípio, este tipo de actuação é mais desvalioso que o de não perturbação[5]. Este desvalor maior terá então de ser compensado por dados que redundem no reforço especial da vinculatividade do dever de salvar outrem, tornando os deveres equivalentes. Isto pode suceder em casos mais extremos, como, e. g., na hipótese de se prever que A vai seguramente morrer muito em breve, enquanto B tem boas hipóteses de ser salvo, desde que seja ligado imediatamente à máquina que mantém A vivo.


[1] Este ponto, como outros tratados a seguir, foi por nós desenvolvido em António Brito Neves, “Do conflito de deveres jurídico-penal: uma perspectiva constitucional”, O Direito, 144 (3), 2012 (pp. 673-727).

[2] “Può rendersi necessario porre un limite di età all’ingresso in T[erapia] I[ntensiva]. Non si tratta di compiere scelte meramente di valore, ma di riservare risorse che potrebbero essere scarsissime a chi ha in primis più probabilità di sopravvivenza e secondariamente a chi può avere più anni di vita salvata, in un’ottica di massimizzazione dei benefici per il maggior numero di persone” (http://www.quotidianosanita.it/allegati/allegato6382982.pdf).

[3] São preocupações como estas que levam, por ex., Christian Jäger/ Johannes Gründel, “Zur Notwendigkeit einer Neuorientierung bei der Beurteilung der rechtfertigenden Pflichtenkollision im Angesicht der Corona-Triage”, ZIS, 15 (4), 2020 (pp. 151-163), p. 159,  a defender, perante casos de pandemia como o actual, que se prescinda de pensar segundo a lógica dualista que opõe simplesmente dever de acção a dever de omissão, diferenciando destes o dever de tratamento, em causa sempre que os pacientes se encontrem naquilo a que os autores chamam “comunidade de perigo e de salvamento”. Neste quadro, a acção e a omissão equivalem-se valorativamente, podendo o médico, segundo concluem, desligar a máquina de um paciente, se há maiores hipóteses de sucesso no tratamento do outro.

[4] A própria fronteira (entre acção e omissão, entre criação do risco e não diminuição do risco, etc.) pode tornar-se problemática. Se a máquina que mantém vivo o paciente requer acções frequentes do médico responsável, pode bem suceder que esta situação esteja mais próxima, no que respeita aos seus moldes problemáticos, de um caso de reanimação por respiração boca-a-boca do que daquele em que foi atirada uma bóia ao nadador em perigo e este passou a poder salvar-se sozinho. Naquele caso, com efeito, pode bem impor-se a conclusão de que o desligamento da máquina não chega a constituir intromissão indevida no espaço alheio, mas mera abdicação de prosseguir com a actuação de salvamento.

[5] Este juízo ecoa em diferentes quadrantes e disciplinas: lembre-se, por ex., como Philippa Foot, no seu famoso artigo sobre casos de “duplo efeito”, justifica as soluções que dá com a ideia de que causar dano é pior que deixar de providenciar ajuda: “The Problem of Abortion and the Doctrine of the Double Effect”, in Philippa Foot, Virtues and Vices: And Other Essays in Moral Philosophy, Oxford: Oxford University Press, 2002 (pp. 19-31), pp. 27 e ss. (disponível neste blog).