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[powerpoint apresentado no II Curso Pós-Graduado de Atualização sobre Direito da Medicina e Justiça Penal, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa]

O problema penal

Artigo 283.º do Código Penal

Questões:

• Qual o bem jurídico?
• Em que espécie de comportamentos consiste a conduta típica?
 
Resposta?
• Bem jurídico complexo
• Natureza pessoal (vida e integridade física)
+ natureza coletiva (segurança da saúde pública)

   Problema:

• O crime de propagação protege logo bens de titularidade individual ou pretende ser antes a proteção da segurança da saúde coletiva?

Consequências das duas hipóteses

Hipótese 1:     A lesão ou perigo de lesão dá-se logo com a transmissão para uma única pessoa
Hipótese 2:  A lesão ou perigo de lesão tem de ser múltipla

Solução sistematicamente adequada:

• O tipo penal pretende abarcar um conjunto amplo de comportamentos desde a o contágio direto pessoa a pessoa até ao contágio múltiplo e indiferenciado.
 
• É suficiente que apenas uma pessoa seja vítima do contágio e que nem sequer haja probabilidade de disseminação.
 
• O que está em causa é o controle de um poder social real de transmitir uma doença. É esse poder específico por ação ou até por omissão que extravasa a competência organizacional (Jakobs)da esfera própria e interfere com a alheia que é o objeto jurídico do tipo legal de crime.
 

Crítica a Damião Cunha no Código Conimbricense (p. 1006 e ss):

• Não considera o sentido e contexto social da propagação de doença contagiosa(o controle da saúde alheia pelo meio da propagação)
• Desenha o bem jurídico a partir das palavras da lei fora do contexto semântico: Propagar é difundir , transmitir e dominar o poder de transmissão por meios que não são os típicos de homicídio ou ofensas corporais
• Aceita soluções valorativamente incongruentes ou sem a devida diferenciação(multiplica os entes sem justificação)
• Assim, para D. Cunha não haveria crime de propagação se o agente transmitir uma doença a uma só pessoa num contexto em que outras pessoas não poderiam ser
 
Robinson Crusoe nunca poderia propagar uma doença contagiosa?

No entanto, independentemente de outros crimes contra as pessoas, por ação ou omissão, o seu comportamento poderia caber no artigo 283º: usa o seu controle sobre a transmissão de doenças dolosa ou negligentemente

Os argumentos de D. Cunha:

• Argumento literal -interpretação de propagar ?
• Argumento da ratio legis?
• Argumento sistemático?
 

Os argumentos de F. Palma:

• A expressão propagar não reclama um resultado coletivo, mas  um modo de atuação. Por outro lado o tipo exige apenas a criação de um perigo para a vida ou integridade física de outrem
 

Argumento da ratio legis ?

• Se a ratio legis é como diz D. Cunha o perigo para a sociedade, tal perigo não depende do número de atingidos mas de um poder de controle disponível pelo agente sobre a esfera de outros

Argumento sistemático ?

• A propagação tal como outros crimes de perigo depende de uma especial perigosidade da ação tal como acontece nas outras alíneas do mesmo preceito
 
 
Imputação objetiva do crime de perigo concreto
 
• Quando é que se pode entender que o perigo para a vida ou saúde decorre (foi criado pela) da propagação?
 
• 1- A decorrência significa causalidade adequada , no sentido de previsibilidade ex ante da criação de um perigo verificável ex post?
• 2- Nos termos da teoria do risco , trata-se da criação ou aumento do risco concretizável ex post de que um perigo de dano para a vida ou saúde se verifique?
 
• Criação ou aumento do risco do perigo verificável ex post?
 
• O que significa criar um risco de perigo através da propagação? Pressupõe levar a contrair uma doença, a mera contaminação com o agente infeccioso ou até apenas o contacto com o mesmo?
 
• Segundo a lógica da  teoria do risco, trata-se de criar ou aumentar o  perigo de um perigo e não diretamente do resultado(substitui-se o perigo do resultado pelo perigo do perigo)
• Assim, a imputação objetiva é bastante antecipada relativamente ao resultado.

Imputação objetiva

• A criação do perigo do perigo em que é que consiste?

• Para Roxin (Strafrecht , Allgemeiner Teil), 3ª ed., p.354), citando jurisprudência germânica, a imputação no tipo objetivo nos crimes de perigo concreto(Gefährdungsdelikte)pressupõe que a ação típica afetou intensamente a segurança de uma pessoa ou coisa de modo que só por acaso é que o bem jurídico não é lesado.

• O seu critério parece ser o da inevitabilidade do dano sem medidas imprevisíveis

• A imputação objetiva no crime de propagação não pode exigir já a verificação da doença que ultrapassa o perigo nem se bastar com a mera disponibilidade por um hospital de um produto infetado ou até  um contacto da potencial vítima com o agente infeccioso.•Deve exigir ,antes,uma fase de inevitabilidade do curso infeccioso, que em geral exigirá um contacto e um curso previsível

• No caso célebre dos hemofílicos , o Tribunal da Relação de Lisboa , considerou consumado o crime de perigo com a disponibilização hospitalar do produto infetado•Na tese da defesa: «O crime de propagação de doença contagiosa é um crime de perigo concreto o que faz dele, por isso mesmo, um crime de resultado; 
Assim, no caso concreto, o momento da consumação deu-se em 18 de Julho de 1986, isto é, no momento em que entraram nos Hospitais Civis de Lisboa 500 frascos do lote n.º 810536 (Factor VIII) e que estariam eventualmente infectados com o vírus da Síndrome da lmunodeficiência Adquirida»

As configurações:

  1. Dolo de propagação + criação dolosa do perigo

2. Dolo de propagação + negligência de perigo

3. Negligência de propagação + negligência de perigo

Exemplos:

  1. disponibilização de sangue contaminado com representação e aceitação desse facto e indiferença pela criação do perigo

2. disponibilização de sangue contaminado com representação e aceitação desse facto, mas convicção de que ninguém ficará sujeito ao perigo

3. disponibilização por falta de controle adequado de sangue contaminado

Problemas de imputação objetiva na transmissão da sida

• O modo de atuação da doença , atacando o sistema imunitário, e não provocando diretamente lesões permite concluir pela imputação objetiva  da morte ou apenas do perigo?

• A resposta é afirmativa quanto ao dano, enquanto não existirem meios normalmente eficazes para impedir a evolução da doença.

• Quem é condenado à morte , sendo executada a sentença dali a anos,não deixa de morrer em consequência dessa condenação anterior

• Argumento da inevitabilidade

• Se morrer por outras causas, completamente estranhas, haverá interrupção do nexo causal.

Problemas de imputação subjetiva na transmissão do vírus da sida

1- Apesar da probabilidade de transmissão ser, em certos casos, baixa não deixa de existir dolo de propagação tal como nas situações de dolo direto com baixa probabilidade de êxito da ação

2- O dolo de propagação só é irrelevante quando houver nos casos de perigo negligenciável

Questões de direito de necessidade em face de um perigo de transmissão de doença contagiosa 

• Justificação da violação do segredo médico no crime de transmissão?

Violação do segredo médico:
Respostas possíveis

1- Invocação do dever de segredo absoluto em função da relação de confiança e do bem público(posição da ordem dos médicos no acórdão do tribunal de torres vedras em 2007)

2- violação do segredo com invocação em concreto do direito de necessidade(artigo 34º)

3- dever de violar o segredo em casos de perigo iminente e muito grave insuperável de outro modo(artigo 135º,nº3, do Código de Processo Penal, posição do acórdão de 2007 do tribunal da Relação de Lisboa, no caso de torres vedras)

Internamento compulsivo de doentes infecto-contagiosos?

• Fundamento Constitucional?

• Fundamento legal?

• Deve ser fundamentalmente entendido como um ato médico, destinado ao tratamento do paciente

• Nessa base restritiva pode ser justificado por direito de necessidade de cariz público, na medida em que o portador da doença  não é instrumentalizado, mas considerado um fim em si mesmo, não se violando a alínea c) do artigo 34º do Código Penal

Internamento e discriminação

Os Aleijados, 1568 – Pieter

Este pequeno painel sempre foi conhecido como Os Aleijados mas, recentemente, demonstrou-se que os homens são, na verdade, leprosos

Debate sobre internamento compulsivo de doente contagioso

• em 2005, o Tribunal da Relação do Porto decidiu que “é legal o internamento compulsivo de quem, padecendo de tuberculose pulmonar, recusa tratar-se e deambula pelas vias públicas, podendo assim afectar outras pessoas.”

Argumentos pro e contra

Pro:

• ponderação de valores e de interesses

• Saúde pública

Contra:

• afastamento dos doentes do tratamento

• Discriminação de certos doentes

Professora Doutora Maria Fernanda Palma

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