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(I)

Do espírito da lei e dos seus problemas

Esta lei, aprovada ao abrigo da reserva relativa de competência da Assembleia da República (artigo 165º, nº 1, alínea c), da Constituição), contempla cinco espécies de medidas: um perdão genérico da Assembleia da República (2 anos), um indulto do Presidente da República, antecipação da liberdade condicional pelo Tribunal de Execução de Penas (6 meses), concessão de saídas administrativas pelo Diretor-Geral de Reinserção Social e dos Serviços Prisionais, com possibilidade de delegação nos Diretores-Gerais Adjuntos (até 45 dias, renováveis) e reexame dos pressupostos da prisão preventiva pelo Juiz de Instrução. Preside à lei um sentido de emergência humanitária e de saúde pública, constitucionalmente justificado. No entanto, suscita alguns problemas:

  1. Na perspetiva político-criminal e político-social, a lei é equívoca, pois mistura duas lógicas difíceis de compatibilizar no que se refere aos crimes excetuados: por um lado, a defesa da sociedade e a prevenção especial, na perspetiva da perigosidade dos agentes em conexão com os crimes mais violentos e intoleráveis contra as pessoas; por outro lado, uma lógica retributiva e de prevenção geral positiva, no que se refere aos crimes de titulares de cargos públicos, de elementos de forças ou serviços de segurança e de magistrados. Na realidade, na perspetiva da prevenção especial, muitos destes últimos casos poderiam não vir a significar perturbação social ou perigosidade concreta. 
  2. Apesar de ser uma lei de perdão em estado de emergência, esta lei não está isenta de uma apreciação de constitucionalidade, à luz dos princípios da legalidade, da necessidade da pena, da culpa e da igualdade. Ora, o legislador não justifica senão vagamente as suas ponderações, nomeadamente o equilíbrio difícil de sustentar entre a prevenção e a retribuição, isto é, prevenção apenas para os crimes contra as pessoas e retribuição para os crimes de certas categorias de pessoas. Por outro lado, não refere dados empíricos que deveriam estar disponíveis sobre o tipo e número de condenados por espécie de penas perdoadas, não se tendo acesso à avaliação técnica que foi feita.
  3. No projeto tinham ficado inexplicavelmente de fora das exceções ao regime do perdão genérico e do indulto os crimes de ofensas corporais graves, que foram entretanto acrescentados na versão final do diploma.
  4.  Sendo excetuados os crimes cometidos por agentes do Estado no exercício das suas funções (membros das polícias, das Forças de Segurança e das Forças Armadas, funcionários e guardas dos serviços prisionais, titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos e magistrados judiciais ou do Ministério Público), o projeto também omitia os crimes praticados contra eles. No entanto, o acrescentamento posterior desses crimes veio, pela sua localização sistemática (artigo 1º, nº 2), gerar uma incongruência: não se lhes aplica, no seu todo, o regime da lei, o que impede também a antecipação da liberdade condicional e a concessão de saídas administrativas. Todavia, estes regimes são aplicáveis a todos os restantes crimes excetuados pela lei quanto ao perdão genérico e ao indulto presidencial, não fazendo qualquer sentido a discriminação.
  5. O elenco de crimes que caem fora do âmbito do perdão genérico e do indulto apresenta “lacunas” incompreensíveis, que, de acordo com o princípio da legalidade penal (artigo 29º da Constituição), não poderão ser integradas por analogia. É o caso, designadamente, dos crimes de terrorismo e de organização terrorista.
  6. Outra omissão relevante da lei diz respeito à pena de multa, suscitando um problema de igualdade. Os condenados perdoados a quem se poderia ter aplicado a multa, mas não foi por razões de prevenção, serão beneficiados relativamente aos que sofreram uma multa pela prática de crimes idênticos.
  7. A lei também não refere quaisquer medidas de acompanhamento pela reinserção social, o que subtrai os condenados a uma ressocialização necessária numa situação particularmente difícil. Prevê-se, no entanto, que o perdão fica sujeito a uma condição resolutiva, no caso de o beneficiado cometer um crime doloso no prazo de um ano.

Os fundamentos do Indulto Presidencial

Sendo a lei de perdão enformada por uma lógica de generalidade limitada por exceções, o indulto também o é, por expressa remissão legal, o que pode frustrar parcialmente os objetivos humanitários que procura atingir. Também aí uma lógica de exceção retributiva condicionará uma figura que poderia ser mais abrangente para pessoas especialmente vulneráveis. Além disso, uma lei que submete o instituto do indulto e da comutação a uma lógica de amnistia e perdão genérico acaba por contrariar as finalidades daquele instituto e restringir os poderes presidenciais.

As saídas administrativas e a liberdade condicional

Por decisão do Diretor-Geral da dos Serviços Prisionais, podem ser concedidas “saídas administrativas” por um período máximo de 45 dias. Não se trata de saídas judiciais da competência de juiz (Tribunal de execução de Penas), mas sim de medidas de natureza administrativa, renováveis, que poderão ser seguidas uma antecipação da liberdade condicional, pelo período máximo de seis meses, essa já da competência de juiz.  Estas saídas estão sujeitas ao regime previsto no artigo 78.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade para as saídas administrativas de curta duração, que são da competência dos diretores de estabelecimentos prisionais e pressupõem que o recluso já tenha beneficiado de uma saída jurisdicional. Contudo, a sua longa duração, o caráter renovável e a articulação com a liberdade condicional antecipada aconselhariam a que fosse uma medida jurisdicional (o que não terá acontecido por razões de “praticabilidade”).

O reexame dos pressupostos da prisão preventiva

Prevê-se ainda (no artigo 7º) que o juiz deve proceder ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva, independentemente do decurso dos três meses previsto no artigo 213.º do Código de Processo Penal. Continua a exigir-se uma ponderação que tenha em conta, designadamente, a “efetiva” subsistência dos requisitos gerais previstos no artigo 204.º daquele Código. Esta medida aplica-se a todos os crimes e a todos os agentes, sem exceção (a lei não faz aqui nenhuma restrição). Uma eventual redução teleológica do regime de reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou uma aplicação analógica das restrições previstas para ao perdão e o indulto violariam claramente o princípio da legalidade penal (artigo 29º da Constituição).

Sobre esta questão, cfr. Albergaria, P. , Revista Julgar online, Abril, 2, 2020.

Professora Doutora Maria Fernanda Palma

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