Crimes desobedientes – análise da base legal para as detenções por desobediência, por António Brito Neves

O autor autoriza a reprodução deste texto, desde que devidamente citado.

  De acordo com as últimas notícias, o Ministério da Administração Interna informa que foram já detidas mais de 80 pessoas por desobediência no terceiro período do estado de emergência, que termina a 2 de Maio. A estas somam-se 108 detenções realizadas no primeiro período, e 184 no segundo. Os números incluem a desobediência à obrigação de confinamento, ao dever geral de recolhimento domiciliário, e ao encerramento de instalações e estabelecimentos.

  Qual a base legal para estes procedimentos?

  O Governo procedeu à execução da declaração do estado de emergência, efectuada pelo Presidente da República, por meio do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de Março. Quanto ao confinamento obrigatório e violação do mesmo, dispõe o art. 3.º deste diploma:

Artigo 3.º

Confinamento obrigatório

  1 — Ficam em confinamento obrigatório, em estabelecimento de saúde ou no respetivo domicílio:

  a) Os doentes com COVID-19 e os infetados com SARS-Cov2;

  b) Os cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa.

  2 — A violação da obrigação de confinamento, nos casos previstos no número anterior, constitui crime de desobediência.

  No que toca ao encerramento de instalações e estabelecimentos, ele é determinado pelo art. 7.º, que remete para o anexo I, parte integrante do decreto.

  Ainda pertinente para este âmbito, temos a seguinte disposição:

Artigo 32.º

Fiscalização

  1 — Compete às forças e serviços de segurança fiscalizar o cumprimento do disposto no presente decreto, mediante:

  a) O encerramento dos estabelecimentos e fazendo cessar as atividades previstas no anexo I ao presente decreto;

  b) A emanação das ordens legítimas, nos termos do presente decreto, a cominação e a participação por crime de desobediência, nos termos e para os efeitos do artigo 348.º do Código Penal, por violação do disposto nos artigos 7.º a 9.º do presente decreto e do confinamento obrigatório de quem a ele esteja sujeito nos termos do artigo 3.º, bem como a condução ao respetivo domicílio;

  c) O aconselhamento da não concentração de pessoas na via pública;

  d) A recomendação a todos os cidadãos do cumprimento do dever geral do recolhimento domiciliário, nos termos e com as exceções previstas no artigo 5.º

  (…).

  Estes textos devem ser conjugados com o art. 348.º do Código Penal (CP), que dispõe:

Artigo 348.º

Desobediência

  1 – Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:

  a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou

  b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.

  2 – A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada.

  A prorrogação do estado de emergência foi regulamentada pelo Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de Abril. Para o que nos interessa, o art. 3.º não sofreu alteração de relevo, e o texto do art. 7.º passou a constar do art. 9.º Quanto à fiscalização, dispõe o art. 43.º:

Artigo 43.º

Fiscalização

  1 — Compete às forças e serviços de segurança e à polícia municipal fiscalizar o cumprimento do disposto no presente decreto, mediante:

  a) A sensibilização da comunidade quanto ao dever geral de recolhimento[;]

  b) O encerramento dos estabelecimentos e a cessação das atividades previstas no anexo I ao presente decreto;

  c) A emanação das ordens legítimas, nos termos do presente decreto, designadamente para recolhimento ao respetivo domicílio;

  d) A cominação e a participação por crime de desobediência, nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal, bem como do artigo 7.º da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, por violação do disposto nos artigos 6.º, 9.º a 11.º do presente decreto, bem como do confinamento obrigatório de quem a ele esteja sujeito nos termos do artigo 3.º;

  e) O aconselhamento da não concentração de pessoas na via pública e a dispersão das concentrações superiores a cinco pessoas, salvo se pertencerem ao mesmo agregado familiar;

  f) A recomendação a todos os cidadãos do cumprimento do dever geral do recolhimento domiciliário, nos termos e com as exceções previstas no artigo 5.º

  (…).

  Por fim, a segunda prorrogação do estado emergência (regulamentada pelo Decreto n.º 2-C/2020, de 17 de Abril) deixou intocados os arts. 3.º e 9.º, bem como, no essencial, o texto do art. 43.º, n.º 1, que passou, no entanto, a constar do art. 46.º, n.º 1.

  No que tange à violação do confinamento obrigatório e do encerramento de estabelecimentos, em face do art. 29.º, n.º 1 – do qual resulta o princípio da legalidade – e do art. 165.º, n.º 1, al. c) – que consagra a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República para a definição dos crimes, penas e respectivos pressupostos –, ambos da Constituição (CRP), é duvidoso que o quadro legislativo apresentado ofereça base de legitimidade aos procedimentos em questão. Com efeito, na falta de autorização legislativa, as disposições referidas e transcritas não lhes proporcionam cobertura legal. A situação agrava-se quando notamos que os diplomas em análise são decretos, não decretos-leis [v. art. 198.º, n.º 1, al. b), da CRP], pelo que devemos equacionar não só a inconstitucionalidade orgânica daquelas normas como também a formal[1].

  O propósito do legislador terá sido o de fixar as ordens legítimas no seu conteúdo, bem como as autoridades competentes para as fazer cumprir, valendo-se do entendimento de que o efeito criminalizador se estriba no art. 348.º, n.º 1, al. a), do CP. Não cremos, todavia, que a perspectiva mereça acolhimento[2].

  A ideia de que a criminalização assenta essencialmente no art. 348.º, constando das normas que discutimos aspectos colaterais insignificantes, ou sem relevo suficiente para valerem em relação a eles as exigências do princípio da legalidade, pressupõe, em primeiro lugar, que a criminalização visa a pura desobediência, com independência do conteúdo do comando a que cabe obedecer. Neste sentido e em segundo lugar, a “legitimidade” da ordem ou mandado funcionaria como mero pressuposto formal equivalente à competência da autoridade ou funcionário para os comunicar. Na regulamentação do estado de emergência, os decretos não trariam, portanto, qualquer inovação ou complemento de conteúdo importante para a aplicação do art. 348.º, mas somente a concretização situacional de condições prévias necessárias à punição nos termos deste.

  Mesmo deixando de lado os problemas de constitucionalidade da criminalização da mera desobediência para lá de casos como os que já constam do art. 347.º do CP, rejeitamos este modo de ver as coisas.

  Para efeitos de aplicação da al. a) do n.º 1 do art. 348.º, a “disposição legal” para cumprimento da qual aparecem a ordem ou mandado legítimos tem de ser norma penal respeitadora dos ditames do princípio da legalidade, ou seja, lei da Assembleia ou decreto-lei autorizado. Destarte, não basta que se trate de diploma cumpridor dos requisitos formais e de competência para ele previstos, como pode suceder com qualquer decreto, regulamento ou portaria, sob pena de se dar azo a que se faça matéria criminal de regulações e disciplinas carentes da correspondente dignidade.

  Pode contra isto tentar remir-se a regulação aventando que se o conteúdo normativo em causa não tiver dignidade penal, deixará de corresponder à “disposição legal” referida no art. 348.º, de modo que a ordem sempre será ilegítima. Todavia, além das incertezas que tal entendimento é passível de gerar, o princípio da legalidade não está limitado nesses termos: se, v. g., o homicídio fosse criminalizado por portaria, não deixaria de haver inconstitucionalidade orgânica e formal, por mais que se argumentasse com a dignidade punitiva dos comportamentos visados e com a necessidade de proteger o bem vida recorrendo à punição criminal. Assim, por muito válidas que se apresentem as razões para punir a desobediência em causa, os mandamentos da legalidade mantêm a força habitual.

  Em suma, o entendimento que subjaz aos propósitos do Governo é inadmissível, por se traduzir em abrir a porta a qualquer criminalização que o legislador pretenda realizar sem respeitar o princípio da legalidade, bondando, para concretizar tal pretensão, que o faça por via indirecta: querendo punir dado comportamento por meio de decreto, bastar-lhe-á que nesse decreto preveja como crime de desobediência a recusa, perante as autoridades, em adoptar o comportamento em questão, remetendo depois para (a moldura penal d)o art. 348.º Por não poder ser assim, a disposição legal referida no art. 348.º tem de ser lei da Assembleia da República ou decreto-lei com autorização legislativa. Não se respeitando este ditame no caso que analisamos, as normas são inconstitucionais.

  A situação agrava-se quando consideramos as detenções por crime de desobediência ao dever geral de recolhimento domiciliário. Neste âmbito, já se convoca a al. b) do art. 348.º, n.º 1.

  Deixando também aqui de lado as dúvidas de constitucionalidade que esta disposição suscita ab initio, estamos perante caso em que a autoridade ou o funcionário podem, “na ausência de disposição legal”, fazer a cominação da pena por desobediência?

  Tem sido comummente entendido que a disposição legal referida nesta al. b) não tem de consistir em norma incriminatória, tratando-se antes de qualquer disposição legal[3]. Deste modo, se, por ex., o comportamento desobediente constitui contra-ordenação ou infracção disciplinar à luz de outro diploma, não pode tornar-se crime em resultado da cominação referida na al. b) do art. 348.º, n.º 1.

  Ainda que não se queira levar esta leitura a todas as consequências, no caso presente, ela parece conduzir à solução que os dados impõem. Com efeito, note-se que nos decretos que vimos referindo, o Governo optou por prever como crime de desobediência somente a violação da obrigação de confinamento, acrescentando depois a possibilidade de cominação por tal crime para o encerramento de instalações e estabelecimentos. Quanto ao dever geral de recolhimento domiciliário (sempre regulado no art. 5.º dos decretos), diferentemente, dispõe-se, como transcrito, que cabe às autoridades a “sensibilização da comunidade”, o “aconselhamento da não concentração de pessoas na via pública e a dispersão das concentrações superiores a cinco pessoas”, ou a “recomendação” do cumprimento daquele dever. Bem marcada fica a separação entre estas indicações e as dadas para os outros casos: se para esses se fala em crime de desobediência, já quanto ao dever geral de recolhimento, guarda-se silêncio de Télefo.

  Se bem vemos, temos de concluir que o quadro legal, pela diferenciação de orientações, não permite concluir pela criminalização do desrespeito pelo dever geral de recolhimento, tal como não permitiria se, por exemplo, punisse tal desrespeito com coima. Pelo que as detenções feitas com invocação da al. b) do art. 348.º, n.º 1 nos parecem feitas, em suma, sem base legal capaz de as validar.


[1] No sentido de haver inconstitucionalidade orgânica e formal, com atenção a outros pontos que aqui não consideraremos, v. Alexandre Au-Yong Oliveira, “O(s) crime(s) de desobediência no atual estado de emergência, em especial no domínio das restrições ao direito de deslocação e fixação – breves notas”, in CEJ, Estado de Emergência – COVID-19. Implicações na Justiça, CEJ: Lisboa, 2020 (pp. 425-444), pp. 425 e ss. (disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/outros/eb_Covid19.pdf – consult. 29/4/2020).

[2] Nem pode dizer-se que venha sendo muito acolhida pela doutrina e pela jurisprudência: vejam-se, a título ilustrativo, os acs. da Relação de Coimbra de 14/10/2009 (Elisa Sales), 25/1/2012 (Paulo Guerra) e 23/5/2012 (Brízida Martins), e da Relação de Évora de 24/3/2011 (Sénio Alves) e 7/5/2019 (Gilberto Cunha), todos adoptando a leitura que faz Cristina Líbano Monteiro, Anotação ao art. 348.º, in Jorge de Figueiredo Dias (dir.), Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, tomo III (Artigos 308.º a 386.º), Coimbra: Coimbra Editora, 2001 (pp. 349-359), p. 353, segundo a qual, não obstante a al. a) do art. 348.º fixar “as condições básicas do ilícito e a sua pena”, nela, “o crime de desobediência parece destinado a servir de norma auxiliar (…) a alguns preceitos de direito penal extravagante que incriminam um determinado comportamento desobediente”.

[3] V. os elementos referidos supra2 (no respeitante ao escrito de Líbano Monteiro, v. a p. 354).

Conflitos Covid-19 e espaço livre da Ética, por Maria Fernanda Palma

Conflitos Covid-19 e espaço livre da Ética

Na Filosofia do Direito, existe uma categoria a que tradicionalmente se recorre – o espaço livre do Direito. Arthur Kaufmann esclarece que se trata sempre de um juridicamente não valorado e não de um juridicamente não regulado (Kaufmann, A., Philosophie des Rechts,1997,p.226), havendo sobre o tema um texto clássico de Engisch (Engisch, K., ZStaat108,1952, pp. 385e ss.).

Tanto a tradição estóica da tábua de Carneades como o discurso kantiano na Metafísica dos Costumes (Metaphysik der Sitten ,Ersther Teil Metaphysischen Anfangsgruenden der Rechtslehre,1798) ou o discurso fichteano (Fichte, J.G, Grundlage des Naturrechts nach Prinzipien des Wissenschaftslehre,1834/35 , com a sua Exemptionstheorie;Palma, Maria F,Direito Penal, Parte Gera,4ªed, 2019, p.262 ) reconhecem que o Direito tem os seus limites insuperáveis e que, em certos casos de conflitos existenciais, nem a pena de morte pode ser motivadora. O Direito, quando não pode cumprir o seu papel de motivação pelas normas, nada mais tem a fazer do que retirar‑se da valoração das situações, deixando à ética social ou à pura moral individual a introdução de critérios de solução de conflitos ou dilemas, isto é, a sua regulação.

A questão que coloco é saber se nesta situação de pandemia, em que a força motivadora e autovinculativa do Direito pode estar em causa, este deve ceder o seu espaço valorativo à Ética ou até mesmo a uma pura lógica de sobrevivência das sociedades, sem cumprir a sua missão de oferecer critérios de solução de conflitos através de ideais de justiça. Estaremos numa espécie de estado de necessidade existencial gigantesco e coletivo em que a voz do Direito deixa de ter cabimento?

Bernard Williams, com o seu liberalismo prudente, tem uma frase que considero inspiradora “The limitation of the moral life is itself morally important” (Williams, B., Moral Luck,1981, p.38), levando-me a pensar que a moralidade que ultrapassa o que seja aceitável pelos destinatários, numa perspetiva de experiência de vida ou mais sofisticadamente de ética do discurso, se torna excessiva e, por isso, não moral noutras perspetivas (Palma, F., Princípio da Desculpa,2005, p.198 e ss..).

Ora o que cabe perguntar nestas circunstâncias é não tanto se os limites do Direito têm de ser ultrapassados, mas antes se os limites da Moral não impõem que o Direito alargue os seus limites e reclame mesmo que conflitos, que não é da sua natureza valorar sejam sujeitos à sua intervenção valorativa. A minha pergunta não é, assim, saber se o Direito se deve retirar do espaço da Ética, mas sim o contrário, isto é, se a Ética, ela mesma, em face dos seus limites, impõe a intervenção do Direito devido à sua insuficiência de fundamentação e pluralidade.

Deste modo, no conflito possível de falta de ventiladores ou dos próprios meios de intervenção médica, numa situação de escassez, a remissão do Direito para a Deontologia Médica, abstendo‑se de valorar e até de regular, não é uma resposta a-problemática. Com efeito, a Deontologia Médica só superaria o Direito se os meros princípios da beneficência e da não maleficência da Bioética fossem satisfatórios e concretos numa situação de pandemia e colapso dos serviços de saúde.

Em geral, o Direito Penal do Estado de Direito aceita como justificado o cumprimento do dever de salvar uma das vidas em conflito, quando se trate de deveres de ação e não de conflitos entre deveres de ação e de omissão, em que prevalecem os últimos(Palma, Maria F., Direito Penal, 2019, p.341 ess). Remete, assim, para o espaço livre do Direito a escolha – o que só pode significar que remete para a Ética. Mas se a resposta ética não for indiscutível ou se puder absorver o preconceito ou a discriminação social ou cultural é a própria Ética que se torna o campo do conflito, não podendo o Direito deixar de moderar ou solucionar com os seus critérios de imparcialidade esse mesmo conflito.

As normas éticas ou aparentemente deontológicas que em vários países são emitidas para orientar os procedimentos dos médicos ou das instituições hospitalares não terão a natureza de Direito, isto é, não procurarão orientar os comportamentos dos médicos em situações de conflitos de vidas com eficácia nos direitos fundamentais de qualquer pessoa? Não estaremos perante algo que ultrapassará o espaço livre do Direito, por lhe pertencer a caraterística fundamental do jurídico, ou seja, a reclamação de uma solução imparcial e justa de um conflito? Não é a justiça do Direito que é ativada com tais regras? Seguindo Baptista Machado(O sistema científico e a Teoria de Kelsen Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, 1985, p.27e ss..),não há uma juridicidade intrínseca nessas regras?

Se houver essa juridicidade intrínseca, então as regras devem ser emitidas ou pelo menos reconhecidas pelo Estado de Direito democrático através dos seus critérios e mecanismos. Se não o forem, é óbvio que os médicos que as não cumpram não poderão ser autores de qualquer ilícito, mesmo disciplinar, pois o ilícito disciplinar em factos desta natureza, que afetem direitos de qualquer cidadão, sempre poderá ser “justificado” pela causa de justificação penal. E esta basta‑se com o cumprimento de um dos deveres igualmente vinculativos na perspetiva do Direito.

Quanto ao conteúdo, tais regras supostamente técnicas apenas poderão utilizar critérios médicos, isto é, de adequação de um tratamento à salvação de um doente, a partir da sua condição e das probabilidades de cura. Mas nunca poderão utilizar critérios de sexo, idade, raça, cidadania ou outros pertencentes a esferas de Justiça diferentes da inerente à atividade médica, mesmo que valiosos na perspetiva do bem-estar da maioria, da maior utilidade social ou do menor dano à sociedade.

Em consequência do que se disse posso apresentar um primeiro conjunto de conclusões:

1ª – Há prevalência inequívoca do dever de omissão sobre o dever de ação, nos termos do artigo 36º do Código Penal. Desligar o meio de suporte da vida a máquina de um paciente que ainda tem probabilidades razoáveis de sobreviver para o utilizar num outro paciente (mesmo que tenha mais probabilidades de sobrevivência) não cumpre as exigências da causa de justificação e é, por isso, um homicídio.

2ª –  Utilizar ab initio um meio de suporte da vida num paciente com doença menos grave e com mais probabilidades de sobreviver sem o referido suporte, em detrimento de outro doente com doença mais grave e com menos probabilidades de sobreviver sem o suporte, não é um comportamento justificado, à luz do artigo 36º do Código Penal.

3ª – O critério do confronto entre a maior e menor probabilidade de cura em doentes que tenham ab initio doença da mesma gravidade não viola o artigo 36º do Código Penal.

4ª – Pelo contrário, a utilização do meio de suporte da vida num paciente com doença igualmente grave, mas uma residual capacidade de recuperação em relação ao outro, não é justificada à luz do artigo 36º, podendo, no entanto, ser desculpada.

5. A utilização de critérios eugénicos (idade, deficiência, utilidade social do paciente ou outro semelhante) é discriminatória e, no mínimo, alheia a uma da justificação plena por ausência do elemento subjetivo da causa de justificação do conflito de deveres.

6. As soluções de sorteio só são admissíveis em situações em que o estado dos pacientes é igualmente grave e todos tenham igual possibilidade de sobrevivência.

Todos estes critérios resultam de um princípio constitucional de essencial e igual valor de todas as vidas, decorrente da igual e essencial dignidade de cada pessoa e do direito à vida (artigos 1º e 24º da Constituição).

Por fim, é evidente que a questão prévia que conflitos deste tipo colocam é a opção por uma política de saúde que vise impedir as situações materiais que os suscitam. Inscreve-se nesse âmbito a política, que tem sido até agora adotada, de confinar as pessoas, sobretudo as mais vulneráveis, para evitar o colapso dos serviços de saúde, em detrimento de uma lógica utilitarista (mesmo que cientificamente fundamentada) de procurar a imunidade de grupo sacrificando os mais fracos. Mas essa discussão de estratégias e políticas de saúde também não pertence ao espaço livre do Direito.

O Direito Penal contaminado: breves notas sobre o crime e a (propagação de) doença, por Nuno Igreja Matos [Parte II]

Segunda Parte
(a primeira parte do texto pode ser lida aqui)

Medidas menos gravosas e efeitos colaterais

A investigação sobre a legitimidade material de um ilícito de propagação de doença enfrenta a inicial crítica de que há, historicamente, medidas menos intrusivas (e porventura até mais eficazes) na dissuasão pessoal e na contenção geral dessa propagação. Desde logo, o estabelecimento de quarentenas ou regras de confinamento obrigatório são medidas alternativas privilegiadas pelas autoridades de saúde, o que se explica pelos resultados que garantem. Mas a dissuasão de comportamentos de propagação é também melhor prosseguida, argumenta-se, através da implementação de uma política de educação e pedagogia sobre os perigos associados a cadeias de contágio ou através da criação de incentivos ou mesmo da introdução de regras de conduta e de cuidado de natureza cível ou regulamentar, mas sempre não-penais [1]. De resto, as Nações Unidas, ainda que especificamente no contexto do vírus HIV/SIDA, concretamente no seu “Report of the Special Rapporteur on the right of everyone to the enjoyment of the highest attainable standard of physical and mental health”, vêm salientando que qualquer abordagem legal a uma doença contagiosa deve privilegiar a optimização das infra-estruturas públicas, o acesso a medicamentos e a promoção de campanhas de sensibilização e que “criminalization of HIV transmission should not form the mainstay of a national HIV/AIDS response, and its necessity is questionable in any event”.

Acresce que mesmo onde e quando se opta pela intervenção criminal, os resultados não são preclaros. A criminalização da propagação de doenças é associada a um aumento do estigma e da discriminação do doente, contribuindo para a sua alienação e para a percepção de que a pessoa infectada não deve permanecer em sociedade. Um exemplo recente disso mesmo pode ser encontrado no caso Teresa Romero, enfermeira espanhola que prestou assistência a pacientes infectados com ébola e que nos dias seguintes foi alvo de uma violenta campanha pública com vista à sua detenção, designadamente a partir de notícias falsas que davam nota da sua falta de cuidado na vida pessoal — por continuar, por exemplo, a frequentar o cabeleireiro [2].

Nesta senda, sustenta-se também que a solução penal se revela muitas vezes contra-producente, na medida em que desencoraja o cumprimento das recomendações e o contacto dos doentes com as autoridades médicas, o que seria pernicioso porquanto as políticas públicas de saúde dependem de uma cultura de proximidade e da capacidade de encontrar soluções inclusivas. Adicionalmente, não é de todo inequívoco que a introdução de uma incriminação desempenhe sequer papel algum na modelação dos comportamentos das pessoas infectadas, como salientado pelas Nações Unidas, ainda que novamente no contexto do vírus HIV/SIDA [3].

Por fim, e ainda que se lograsse superar todas estas críticas, a incorporação de um crime autónomo de propagação de doença permaneceria ainda de utilidade discutível, uma vez que, conforme vem sendo sustentado na Alemanha, em França e em Espanha, a proibição de um comportamento dessa natureza seria ainda subsumível a crimes preexistentes, mormente o crime de ofensa à integridade física.

Propagação de doença e COVID-19

As mais comuns críticas à incriminação da propagação de doença que vimos de listar baseiam-se, em grande parte, nas especificidades, formas e probabilidades de transmissão pessoal do vírus HIV/SIDA. A singularidade do vírus Covid-19, incluindo quanto à taxa e forma de contágio, impõe adicional moderação no exame a estas críticas específicas a uma incriminação que, pelo menos no caso português, é bem mais ampla. É notório que a velocidade e formas de propagação deste vírus respiratório — que, como se vem apurando, se propaga principalmente através de gotículas produzidas por tosse ou espirro ou através da saliva — levanta novos problemas, certamente nunca pensados na articulação do Direito Penal com o vírus HIV/SIDA. Com efeito, e como se tem constatado, o vírus Covid-19 não só se propaga mais rápida e facilmente, incluindo através do contacto com superfícies, como pode existir no seio de uma dada comunidade sem que os membros que a integram disso sequer se apercebam numa fase inicial. A existência de pacientes assintomáticos agrava este problema, transportando consigo adicionais dificuldades na prevenção da transmissibilidade pessoal da doença. As hipóteses de propagação inconsciente são, pois, elevadíssimas, o que vai também diminuir a taxa de sucesso das políticas de saúde comummente privilegiadas, isto é, as quarentenas e os confinamentos obrigatórios.

Ainda que assim não fosse e se continuasse a admitir que as medidas de saúde pública de natureza não penal prosseguem melhor e suficientemente os propósitos de contenção de doença de Covid-19, a carência de tutela penal poderia continuar a ser afirmada, visto que, como se torna manifesto em situações limite, esta norma criminal se dota de uma utilidade adicional na dissuasão e punição de quem propaga o vírus. Sempre se poderá argumentar que, pese embora os sucessos das políticas de confinamento, o dano associado ao incumprimento dessas políticas por um só indivíduo configura uma situação de tal forma grave — também porque passível de pôr em perigo o sucesso dessas soluções implementada — que sempre reclamará intervenção penal. Aqui chegados, faz até pouco sentido vir apontar o suposto efeito estigmatizante da incriminação — argumento, de resto, que nem encontra um suficiente suporte empírico [4], pelo menos perante doenças que não o vírus HIV/SIDA — ou a sua putativa tendência para desviar o foco da necessidade de cumprimento das recomendações de saúde quando as próprias medidas ditas mais eficazes como as quarentenas e os confinamentos são o mais das vezes dobradas por ameaças de sanção penal — habitualmente, o crime de desobediência — com o intuito oposto, isto é, com o propósito de sinalizar a indispensabilidade da observância dessas regras. Dito de outro modo, mais sintético, as medidas não-punitivas e medidas punitivas podem legitimamente conviver no quadro de uma mesma política de contenção de doença, sem que isso indicie o excesso da intervenção penal, principalmente quando essa intervenção seja apta a reforçar o cumprimento das medidas de saúde ou permita agir sobre situações de perigo para a saúde pública que de outra forma passariam impunes.

Fica, todavia, por elucidar por que seria de autonomizar uma incriminação da propagação de doença quando outros ilícitos como a ofensa à integridade física, o homicídio ou o crime de desobediência aparentam já prevenir e tutelar comportamentos dessa natureza, conforme vem sendo entendimento de vários outros países.

A este propósito, não é, logo à partida, de menorizar a utilidade da introdução de um ilícito de propagação de doença para a dissipação das dúvidas — e consequente diminuição da imprevisibilidade e segurança jurídica — sobre as concretas condutas de propagação de doença que são já tuteladas ao abrigo de crimes tradicionais [5]. E isto porque, embora, entre nós, o crime de ofensa à integridade física preveja a “ofensa à saúde” como punível, e até estipule uma agravação quando se cause “doença particularmente dolorosa ou permanente” (artigo 144.º, alínea c), do Código Penal), a verdade é que a norma em causa não é nada clara a respeito das situações da transmissão de doença, mormente quando a enfermidade em causa não seja sequer susceptível de gerar qualquer tipo de sintomas [6].

Mais: um crime de perigo de propagação de doença como aquele previsto no artigo 283.º do Código Penal permite punir, ou mesmo punir de forma mais adequada, condutas que, de outra forma, seriam criminalmente irrelevantes ou objecto de uma condenação desproporcional, não obstante os sérios perigos de danos que podem causar à saúde pública. Assim sucederá, por exemplo, perante um comportamento de contaminação que provoque um perigo nunca consumado para a integridade física. Num cenário destes, estará preenchido o crime de propagação de doença do artigo 283.º do Código Penal, e não apenas eventual ofensa à integridade física simples (que sempre dependeria da prévia demonstração de que tal contaminação constitui já um típico “dano à saúde”) ou tentativa de ofensa à integridade física grave. Ainda mais pertinentemente, o crime do artigo 283.º do Código Penal torna inequivocamente punível a conduta de propagação de doença com um dolo de perigo não individualizado, isto é, dirigido à difusão da doença na comunidade. E permitirá ainda sancionar penalmente a conduta de quem, através de propagação de doença, contagia um terceiro sem causar qualquer perigo para a sua integridade física, mas que vem posteriormente a contactar com uma outra pessoa que, por ser de um grupo de risco, sofre complicações como consequência do contacto com a doença cuja cadeia de contágio o agente iniciou.

A compreensão deste alcance diferenciador do crime de propagação de doença é, de resto, uma consequência do bem jurídico complexo que o mesmo tutela, que abrange a integridade física e a vida individual, por um lado, mas também a segurança da saúde pública, por outro, como argumenta Maria Fernanda Palma [7]. Acompanhando a Autora, “[o] que está em causa é o controle de um poder social real de transmitir uma doença”. Ora, assim compreendido o objecto do ilícito em causa, as virtudes da sua autonomização no ordenamento penal tornam-se mais visíveis, pois que os seus propósitos punitivos extravasam os limites típicos das ofensas imediatas a bens jurídicos pessoais (que já seriam puníveis) para abarcar também as condutas que coloquem em perigo a saúde pública, mesmo que de forma mediata. O que também facilita em muito o enquadramento da responsabilidade das pessoas colectivas como sujeito deste crime, conforme o artigo 11.º do Código Penal vem admitir. Por exemplo num cenário em que a empresa não faculta os meios materiais e formativos necessários a um grupo de trabalhadores.

Não obstante, o crime de propagação de doença permanece permeável a críticas diversas no que respeita à sua aplicabilidade, as mais frequentes das quais relacionadas com a imputação da propagação e com conexas probatio diabolicas. O vírus Covid-19 amplifica estas dificuldades precisamente porque, face às particularidades e facilidade da sua transmissão, será o mais das vezes, e para dizer o mínimo, especulativo assumir que um dado contágio ocorreu em consequência de um concreto comportamento de propagação levado a cabo por um determinado agente — e não, por exemplo, na sequência do contacto com uma qualquer superfície ou pela proximidade a uma outra pessoa. A inibição que pode resultar deste risco de valoração de actuações indeterminadas, ou mesmo indetermináveis, põe em crise a utilidade prática do ilícito. Não será alheio a isso mesmo a notícia recente de que o Ministério Público português tem optado por não imputar o crime de propagação de doença no contexto de condutas de propagação ou de perigo de propagação no contexto da epidemia de Covid-19 [8].  

Também passível de suscitar dúvidas é a opção do legislador português de criminalizar a conduta de propagação de doença mesmo em casos de negligência na propagação, uma solução nada consensual mesmo junto dos Estados que optam pela incriminação. No âmbito do combate ao vírus HIV/SIDA, vírus que, como é sabido, até implica um contacto pessoal mais próximo e intenso com a vítima do que o vírus Covid-19, as Nações Unidas vêm apelando à exclusão da incidência penal sobre condutas de propagação não intencionais por ausência de carência penal (“inappropriate”) [9]. Novamente, o tema é bem mais complexo se perspectivado fora do quadro do vírus HIV/SIDA, como compete ao legislador na enunciação de um tipo penal de propagação de doença. Há situações, como no caso dos hemofílicos citado por Maria Fernanda Palma em artigo publicado neste blog, em que a violação negligente do dever de cuidado e os riscos potenciais daí advenientes ascendem a um patamar em que se torna plenamente sustentável a intervenção penal. Por outro lado, perante as particularidades do vírus de Covid-19 — e supondo agora que seria possível ultrapassar os problemas de adequação e imputação da propagação —, a punição da conduta a título negligente, além de poder não atingir esse patamar devido a uma quase inevitabilidade das cadeias de transmissão comunitárias, poderia culminar numa massificação da responsabilidade penal: basta pensar nos casos de uma pessoa que esteve recentemente em contacto com alguém a quem veio a ser diagnosticado o vírus e que se desloca ao mercado ou a outro sítio público.

Em face do exposto, não surpreenderá a constatação da reduzida aplicabilidade do crime do artigo 283.º do Código Penal, como parece resultar das estatísticas recolhidas por Rita do Rosário, em artigo neste blog, e também da verificação de que existem em fontes públicas apenas dois Acórdãos [10] que versam sobre condenações por este ilícito (e em ambos na forma tentada). O crime de propagação de doença é de aproximação difícil, tanto no que se reporta à legitimação material da incriminação, como na compreensão e articulação de todos os seus elementos típicos e subsequente aplicação casuística. Trata-se, pois, de um viveiro de problemas e dilemas clássicos de Direito Penal, agora inesperadamente sob foco no contexto da epidemia de Covid-19.


[1] Assim, e entre outras medidas alternativas, Hannah Quirk / Catherine Stanton, “Disease Transmisson and the Criminal Law: A Growing Concern?” in Criminalising Contagion, ob. cit., p. 1.

[2] Sobre o tema, Samuel Fernández, “Responsabilidad Penal y contagio de ébola” in Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia, 16-17, 2014, p. 19-22, disponível em: http://criminet.ugr.es

[3] “[T]here is little evidence that specific laws criminalizing HIV transmission deter or modify the behaviour of individuals. With little benefit demonstrated in terms of achieving the aims of the criminal law or public health, and a corresponding risk of alienation, stigmatization and fear, it is difficult to see why the criminalization of HIV transmission is justified at all. Laws that are unnecessarily punitive will undermine any public health response to HIV, rather than assist it”, in United Nations – General Assembly, Report of the Special Rapporteur on the right of everyone to the enjoyment of the highest attainable standard of physical and mental health, parágrafo 73.

[4] Referindo-se à ausência de indicadores empíricos que sustentem este efeito estigmatizante da intervenção penal, v. Matthew Weait, “HIV and the meaning of harm” in Criminalising Contagion, ob. cit., p. 19.

[5] Indicando que a punição da transmissão de doença ao abrigo dos ilícitos penais gerais conduzirá a “greater legal uncertainty”, v. Aslak Syse, ob. cit.,p. 111.

[6] Para uma interessente, mas a várias títulos questionável, sustentação de que a contaminação com uma doença transmissível pode nem sequer constituir uma ocorrência criminalmente relevante a partir da análise do contágio com o vírus HIV/SIDA, v. Matthew Weait, ob cit., p. 18-34.

[7] Maria Fernanda Palma, “Propagação de doença” in https://cidpcc.wordpress.com/2020/04/10/propagacao-de-doenca-contagiosa-por-maria-fernanda-palma/. Em sentido oposto, isto é, identificando apenas uma tutela individual de bens jurídicos como a vida ou a integridade física, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª edição, UCP Editora, Lisboa, 2010, p. 1010; Damião da Cunha in Comentário Conimbricense do Código Penal (dir. Jorge de Figueiredo Dias), Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pp. 1007-1008; J.M Castela Rio / M. Miguez Garcia, Código Penal – Parte Geral e Especial com notas e comentários, 3.ª edição, Almedina, 2018, p. 1247.

[8] Isso mesmo foi noticiado pelo Jornal de Notícias na edição de 08.04.2020, p. 19.

[9] UNAIDS e UNDP, “Criminalization of HIV Transmission”, Policy Brief, Genebra, 2008, p. 1, disponível em:   https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/jc1601_policy_brief_criminalization_long_en.pdf. No mesmo sentido, United Nations – General Assembly, Report of the Special Rapporteur on the right of everyone to the enjoyment of the highest attainable standard of physical and mental health, parágrafos 74 e 75-.

[10] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10.10.2017, proc. n.º 17/15..8PFSTB.E1, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/-/69D29FFEF9AB667A802581C3004AB047. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.05.2019, proc. n.º 765/15.5T9LAG.E1.S1, disponível em:            http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/5d4936b972749b0e802583fd002da840?OpenDocument.

O Direito Penal contaminado: breves notas sobre o crime e a (propagação de) doença, por Nuno Igreja Matos [Parte I]

Primeira Parte

São conhecidas as teses criminológicas e de política criminal que se desenvolvem a partir de propostas de compreensão do crime como doença — “how to reduce crime? Treat it like an infectious disease” sugeriu, celebremente, Gary Slutkin [1], no âmbito dos chamados crime contagion models. Questão diferente consiste em saber se a propagação de doença deve ser configurada como um crime. A dúvida é imemorial, mas torna-se urgente sempre que uma nova doença pessoalmente transmissível ameaça as condições de saúde individual e pública a uma escala relevante. A difusão do vírus HIV/SIDA e o aumento dos casos do vírus ébola haviam já motivado, sobretudo na década de 90, novas incursões da doutrina penal em torno da necessidade e aplicabilidade de um ilícito de propagação de doença. Actualmente, a pandemia de Covid-19 restaurou a pertinência do problema, mais a mais considerando os incontáveis casos tornados públicos de comportamentos passíveis de exponenciar a propagação do vírus, como o de uma “uma mulher, de 78 anos, infectada com o coronavírus, que andava a fazer compras num hipermercado”, um homem que “durante uma discussão com a mulher terá lambido a sua cara, de forma a infectá-la com Covid-19” ou uma empresa que ocultou dos seus trabalhadores a confirmação de um caso positivo [2].

Para o Código Penal português, é inequívoco que a propagação de doença constitui um crime, como se alcança da leitura do artigo 283.º, n.º 1, alínea a), e n.os 2 e 3. No entanto, esta resposta não é unânime nos demais ordenamentos penais, nem sequer no contexto dos Estados europeus, o que indicia a controvérsia que persiste sobre a legitimação material da propagação de doença como criminosa, aliada ainda e também a subsequentes dificuldades várias na sua aplicação casuística.

O crime como doença e a doença como crime

As afinidades entre crime, pena e doença são inesgotáveis. Na Bíblia, a doença surge recorrentemente associada a um castigo pela desobediência terrena. Em Levítico 21:14-16, o incumprimento dos mandamentos é sancionado com “o terror, o definhamento, a febre e as enfermidades, que consomem os olhos e esgotam a vida”, ou, nas palavras de Moisés em Deuteronómio 28-22, “com doenças devastadoras, febre e inflamação”. Esta ideia de doença como castigo foi repetida durante a peste negra e, de alguma forma, subsiste até aos dias de hoje, como foi abundantemente ilustrado pelas reacções homofóbicas ao surto de HIV em finais do século XX, e é ainda corroborado por notícias recentes de quem imputa à amoralidade a causa da epidemia de Covid-19 [3].

Paralelamente, não pode deixar de se constatar um lastro comum na percepção do crime e da doença, cujas ressonâncias hodiernas ecoam desde as teses lombrosianas e se renovam com as propostas da criminologia e as recentes teorias biológicas do crime. Criminoso e doente são, afinal, figuras sociais afins pela sua perigosidade e necessidade de controlo e reabilitação. E nem sempre é claro onde traçar a césure entre um e outro, nem, por conseguinte, entre o Direito Penal e a intervenção médica, como se constata, a título de exemplo mais expressivo, perante um consumidor de estupefacientes.

Esta cumplicidade imagética entre crime e doença não é inocente no contexto da incriminação da propagação de doença — precisamente porque, na compreensão de condutas desta natureza, a fronteira entre criminoso e doente, já esbatida por aquelas aproximações culturais e científicas, extingue-se de vez. O problema da criminalização acaba, pois, por ser debatido num território desocupado e que se presta, por isso, a ser reclamado em exclusividade tanto por penalistas como pela comunidade médica, o mais das vezes por apelo a argumentos que salientam a perversidade decorrente da redução do problema à medicina ou ao direito penal [4]. Circunstância que explicará, até certo ponto, as posturas dissonantes no que respeita à incriminação da conduta de propagação de doença.

O direito penal e a propagação de doença

Um dos primeiros casos de intervenção penal no contexto de um surto de doença transmissível terá ocorrido em 1630, numa Milão assolada pela peste, quando os juízes da cidade tentaram conter os avanços da enfermidade acusando e condenando os supostos propagadores e demolindo as suas habitações (construindo, em seu lugar, as celebrizadas colunas infames) [5], o que logo na época deu azo a contestação por perverter o sistema de justiça criminal [6]. Mas terão sido os sucessivos surtos de sífilis que, no século XIX, impulsionaram o debate sobre a relevância jurídica do contágio um pouco por toda a Europa, surgindo então as primeiras defesas da respectiva dignidade punitiva, ainda que inicialmente por referência a delitos de ofensas à moralidade. Mais recentemente, o surto do vírus HIV/SIDA contribuiu para uma sedimentação da postura oposta, isto é, de abstenção da intervenção penal, considerando sobretudo os efeitos colaterais de estigmatização da punição dos portadores da doença e, bem assim, o sucesso de campanhas internacionais e humanitárias de sensibilização para a desnecessidade de intervenção penal, lideradas pelas Nações Unidas.

Uma panorâmica pelos ordenamentos penais espelha a polémica subjacente. Em Itália, o crime de contágio é positivado no Codice Rocco de 1930, a partir da figura do “crime de contágio de sífilis e blenorragia”, agora transformado no “crime de epidemia” do artigo 438.º do Código Penal vigente. Em Portugal, o Código Penal de 1886 não previa ainda qualquer crime de propagação de doença, que emerge apenas em 1982 no artigo 270.º do Código Penal, na redacção resultante do Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro [7], e que com o Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, passou a integrar o actual artigo 283.º, conjuntamente com o crime de alteração de análise ou de receituário. Países como a Áustria e a Suíça — que inspiraram a solução vigente em Portugal —, e também a Suécia, a Finlândia e a Noruega integram actualmente previsões penais semelhantes sobre a transmissão de doença [8].  No Reino Unido, não obstante a ausência de uma previsão legal expressa dirigida à punição de comportamentos de transmissão de doenças, a aplicação jurisprudencial do Offences against the Person Act 1861 foi também evoluindo no sentido de as condutas de ofensas físicas abrangerem também, primeiramente, danos causados sem recurso à força física (caso Burstow [9]), e, mais tarde, igualmente condutas de propagação de doenças (em particular desde o caso Dica [10]).

Solução diferente, isto é, de não criminalização, pelo menos por via directa e expressa, é adoptada em países como Espanha, Dinamarca e Holanda. Razões diversas explicam estas opções. No caso dinamarquês e holandês, a opção parece explicar-se por razões de preferência por uma abordagem culturalmente menos incisiva em matéria de intervenção na relação entre privados, considerando em particular os efeitos colaterais históricos (e relacionados ainda com o vírus HIV/SIDA) associados a um crime dessa natureza no contexto de relações sexuais entre indivíduos. Em Espanha, os crimes de “propagación maliciosa de enfermidades” e de “contagio venéreo”, que foram introduzidos pelo Código Penal de 1928, vieram a ser revogados pelo Código de 1995, em grande parte por não ser aplicado pelos tribunais e por se revelar inútil a uma política geral de saúde de contenção e sensibilização quanto às doenças transmissíveis [11]. Na Alemanha, o concreto problema da criminalização da propagação de covid-19 parece ser um não-tema, na medida em que a sua ausência é suprimida pela aplicação dos tipos penais gerais de ofensa à integridade física já previstos no Código Penal, pelo menos, no que respeita a condutas dolosas de propagação [12].

Vejamos, então, que argumentos podem sustentar convicções tão opostas sobre a necessidade, por um lado, e inutilidade, por outro, da vigência de um crime de propagação de doença.

Final da Primeira Parte
(a segunda parte do texto pode ser lida aqui)

actualizado em 10.05.2020


[1] Gary Slutkin, “How to Reduce Crime: Treat it like an infectious disease”, in https://ideas.time.com/2013/05/30/how-to-reduce-crime-treat-it-like-an-infectious-disease/. Desenvolvidamente, sobre os paralelismos entre a propagação e o combate a doenças contagiosas e a prevenção criminal, v. Gary Slutkin in Contagion of Violence: Workshop Summary (AA.VV), The National Academic Press, Washington, 2013, pp. 41 e ss., e a palestra “Let’s treat violence like a contagious disease”, que pode ser visualizada online no seguinte endereço: https://www.ted.com/talks/gary_slutkin_let_s_treat_violence_like_a_contagious_disease.

[2] “Idosa infecta detida num hipermercado em Ovar” in    https://sicnoticias.pt/especiais/coronavirus/2020-04-07-Idosa-infetada-detida-num-hipermercado-em-Ovar.   “Ex-jogado lambe cara da mulher para espalhar coronavírus” in https://www.record.pt/jogo-da-vida/detalhe/ex-jogador-da-nfl-lambe-cara-da-mulher-para-espalhar-coronavirus-esta-acusado-de-violencia-domestica?ref=HP_1BucketDestaquesPrincipais. “McDonald’s staff walkout over lack of coronavirus protection after worker tests positive” in https://www.the-sun.com/news/644034/california-mcdonalds-staff-walkout-coronavirus-protection-employee-positive/.

[3] “White House faith adviser is under fire after suggesting that coronavirus is due to God’s wrath over homosexuality and environment” in https://www.washingtonpost.com/politics/2020/03/27/top-white-house-faith-adviser-is-under-fire-suggesting-that-coronavirus-is-due-gods-wrath-over-homosexuality-environmentalism/. “”Ignorância, fanatismo ou loucura”. Cardeal António Marto critica quem diz que pandemia é castigo de Deus” in https://observador.pt/2020/04/15/ignorancia-fanatismo-ou-loucura-cardeal-antonio-marto-critica-quem-diz-que-pandemia-e-castigo-de-deus/

[4] Seguimos de perto Michael Hanne, “Crimes and Disease: contagion by metaphor” in Criminalising Contagion: Legal and ethical challenges of disease transmission and the Criminal Law, Cambridge University Press, 2016, pp. 45 e seguintes.

[5] Luis Arroyo Zapatero, “La supression del delito de propagacion maliciosa de enfermidades e el debate sobre la posible incriminacion de las conductas que comportam riesgo de transmission del sida” in Derecho y Salud, Vol. 4, núm. 2, 1996, pp. 1-2, disponível em https://www.ajs.es/descarga/attach/363. Sobre o tema, entre nós, está editado o livro de Alessandro Manzoni, História da Coluna Infame, Assírio & Alvim, Lisboa, 1991.

[6] Emilia Musumeci, “Il funesto delitto: il contagio e l’imbarazzo dei giuristi” disponível em: http://www.historiaetius.eu/uploads/5/9/4/8/5948821/musumeci_12.pdf p. 6.

[7] “Quem propagar doença contagiosa, criando um perigo para a vida ou de grave lesão da saúde ou da integridade física de um número indeterminado de pessoas, será punido com prisão de 1 a 5 anos e multa de 100 a 150 dias.

2 – É aplicável ao crime previsto no número anterior o que fica disposto no artigo 267.º A mesma agravação terá lugar quando o agente actuou por baixeza de carácter ou quando causou a epidemia por meio da difusão de gérmens bacteriológicos ou vírus.

3 – Se a conduta descrita no n.º 1 deste artigo for imputável a título de negligência, a pena será a de prisão até 1 ano e multa até 60 dias. Tratando-se, todavia, da infracção, por médico, da obrigação de participar doença contagiosa, a pena será a de prisão de 6 meses a 2 anos”.

[8] Aslak Syse, “Criminal Law and Contagious Diseases – A Nordic Perspective” in Criminalising Contagion, ob. cit., p. 98.

[9] R v Burstow [1997] UKHL 34 House of Lords, de 24.07.1997.

[10] R v Dica [2004] 3 ALL ER 593, de 05.05.2004.

[11] Luis Arroyo Zapatero, ob. cit., pp. 2, 4.

[12] Thomas Fischer, «Virus Straftbar!», in https://www.spiegel.de/panorama/justiz/coronavirus-und-das-strafrecht-virus-strafbar-kolumne-a-9347f5da-d295-4a67-90b4-3e0362f77089

Pandemia de deveres – Conflito de deveres em tempos de pandemia, por António Brito Neves

  O autor autoriza a reprodução deste texto, desde que devidamente citado.

  As situações dramáticas tradicionalmente apresentadas no âmbito académico para tratar os regimes do conflito de interesses parecem eivadas de ficção, saídas de mentes desocupadas, só comuns em tempos extraordinários.

  Os tempos extraordinários chegaram.

  Estado de necessidade e conflito de deveres são figuras de conflito de interesses. Começam por surgir no Código Penal (CP) como causas de justificação – nos arts. 34.º (Direito de necessidade) e 36.º, n.º 1 (Conflito de deveres). A lógica fundamentadora da exclusão da ilicitude é a mesma em ambos os casos: uma exigência de solidariedade conjugada com uma ponderação de interesses. Só um mandamento de solidariedade, como princípio constitucional implícito, explica que alguém não juridicamente responsável deva suportar uma lesão dos seus bens jurídicos, ou que estes sejam postos em perigo. Os limites para tal sacrifício são estabelecidos por referência à dimensão dos valores em comparação e à autonomia pessoal do sacrificado. Respeitados os termos destes regimes, não pode o agente ser impedido de actuar, ou forçado a agir de outro modo.

  Estado de necessidade e conflito de deveres são, não obstante, figuras autónomas, distinguindo-se nos seguintes termos: estão verificados os pressupostos do estado de necessidade quando o agente tenha de decidir entre adoptar o comportamento A e não adoptar o comportamento A. Diferentemente, em caso de conflito de deveres, a opção é feita entre adoptar o comportamento A e adoptar o comportamento B. Deve-se isto a que a acção praticada em estado de necessidade é uma da qual o agente, à partida, se devia abster, recebendo permissão especial para a praticar, enquanto no conflito de deveres, o agente deve optar entre diversos procedimentos que está, em princípio, obrigado a realizar. Neste último caso, portanto, o agente tem de actuar num sentido ou noutro, não podendo eximir-se de nenhum dos procedimentos. Deste modo, os critérios de afastamento da responsabilidade por conflito de deveres mostram-se adequados tanto em casos em que conflituem apenas deveres de acção como naqueles em que colidam deveres de acção e de omissão[1].

    A opção, seguida pela maioria da doutrina, de tratar este último tipo de conflitos convocando os critérios do estado de necessidade parece trair a pressuposição de que o dever de omitir prevalece sempre sobre o dever de agir – de tal modo que sobre o agente, quando muito, poderá recair uma permissão excepcional de cumprir o dever de agir e violar o dever de omitir, mas nunca uma obrigação de violar o dever de omitir para cumprir o dever de agir. Tal pressuposição, contudo, revela-se insustentável logo de um ponto de vista metodológico. Pois só uma ponderação que permita evidenciar o mérito problemático do caso concreto permitirá concluir pela validade do juízo de prevalência do dever de omitir sobre o dever de agir. Ainda que admitamos como um dos critérios dessa ponderação o de que a acção e a omissão, enquanto tais, possuem cargas axiológicas diversas (mais significativa a da acção que a da omissão), tal não é razão suficiente para dispensar aquela ponderação, que se destinará a confirmar se a diferença deve reflectir-se a final numa solução de preponderância do dever de omitir.

  A selecção dos critérios do estado de necessidade como adequados aos casos de conflito entre dever de acção e dever de omissão impossibilita a ponderação referida, porquanto lhe dá resposta (a da prevalência do dever de omitir) sem que a devida consideração da concreta problematicidade da situação chegue a ter lugar. A solução dada à partida é, por isso, uma falsa solução. Os critérios do conflito de deveres, pelo contrário, na medida em que orientam uma ponderação da vinculatividade dos deveres contendores no caso decidendo – obrigando assim à consideração atenta dos vários factores do caso que influem nessa ponderação –, deixam a resposta onde deve estar: depois da pergunta. E ainda que se conclua pela prevalência do dever de omitir, essa conclusão aparecerá no fim da ponderação e, então sim, será válida (tanto quanto o for a própria ponderação).

  Estas diatribes metodológicas não estão desprovidas de significado prático. Suponhamos, por exemplo, que o paciente A chega ao hospital com necessidade urgente de ser ligado à máquina que mantém vivo o paciente B; que só há outra máquina noutro hospital; que o paciente B pode ser transferido sem risco significativo, mas o paciente A não pode esperar mais. Atendendo aos deveres do médico responsável, parece razoável afirmar a prevalência do dever de acção (de ligar o paciente A à máquina) sobre a proibição traduzível num dever de omissão (de interromper o tratamento de B). As consequências práticas são óbvias: optando por não desligar a máquina e deixando A morrer, o médico terá omitido o cumprimento do dever prevalecente. Ele tinha o dever, não somente a permissão, de tratar A, de modo que a omissão pode ser tida como típica e ilícita, visto não estar justificada por conflito de deveres. Se, ao invés, pretendêssemos que a acção de interromper o tratamento de B estaria justificada por direito de necessidade, a punição da omissão correspondente não se compreenderia, pois traduziria a irrogação de uma pena à omissão de um comportamento permitido, não devido.

  Em situação de conflito de deveres – i. e., quando recaia sobre o agente (para o que nos interessa: o médico) mais que um dever, não lhe sendo possível cumprir todos, e não havendo cirtério legal de solução concreto –, rege o art. 36.º, tendo o médico de optar por escolher um dever que seja tão ou mais vinculante que o preterido.

    Os factores a ponderar na avaliação da vinculatividade dos deveres em conflito são, em grande parte, os mesmos que determinam a sensível superioridade do interesse exigida para a justificação por direito de necessidade no artigo 34.º, al. b). O valor dos bens jurídicos em causa serve de ponto de partida, merecendo prevalência, por exemplo, o dever de afastar um perigo para a vida sobre o dever de afastar um perigo não mortal para a saúde. A gravidade do dano e o grau de perigo de concretização do mesmo condicionam, no entanto, esta avaliação, podendo mesmo levar a que um bem em abstracto menos valioso prevaleça sobre o concorrente. É mister ainda não confundir os factores: o grau de perigo, a gravidade do perigo e a probabilidade de salvamento são pontos distintos, merecendo, portanto, atenção diferenciada.

  Quando a pesagem dos vários factores não induza à prevalência de nenhum dos deveres, o médico escolhe livremente qual vai cumprir. A liberdade de escolha implica que nestes casos, o médico pode decidir em função do critério que preferir, independentemente de este incluir motivações racistas, de inimizade ao paciente preterido, ou moralmente censuráveis por outro motivo.

  No processo de avaliação, há-de levar-se em conta a especificidade das situações em que estejam vidas em causa. Isto porque, como costuma dizer-se, este bem é imponderável quantitativa e qualitativamente. A imponderabilidade deriva da igualdade absoluta de valor entre vidas, que, para além de ter fundamentação cultural historicamente afirmada, é também premissa lógica da democracia. O médico não está obrigado a escolher um dever em vez de outro apenas porque aquele se destina a proteger maior número de vidas, ou pessoas com determinadas características (como a nacionalidade, a cor de pele, a idade, ou o peso). Se o médico optar, portanto, por salvar a vida de um paciente quando podia ter evitado a morte de outros dois, o seu comportamento não deixa de poder estar justificado por conflito de deveres, tal como se optar por salvar o idoso em vez da criança, o árabe em vez do europeu, etc.

  Esta liberdade de escolher quem vive e quem morre não deve valer nos mesmos termos, porém, para os casos de conflito entre dever de acção e dever de omissão, já que, por princípio, não é permitido ao médico criar ou potenciar um risco para o bem vida (exceptuando desde logo, naturalmente, situações em que esse risco esteja necessariamente envolvido no próprio tratamento). Assim, numa situação em que é impossível salvar a vida de todos os pacientes, pode o médico escolher acudir um e deixar o outro morrer, mas não pode, por norma, provocar a morte de um para salvar outro. A Ordem Jurídica não confere ao médico o papel de Destino (o poder de decidir quem vive quem morre) quando tal implique uma acção de causar a morte.

  Uma excepção que aqui pode ser admitida surge nos casos em que a pessoa a sacrificar está condenada à partida – casos habitualmente tratados no âmbito do estado de necessidade defensivo. Com efeito, aí, por um lado, o lucro com a observação da proibição de matar seria nulo (já que todos morreriam); por outro, o médico não está verdadeiramente a escolher o sacrificado como aquele que deve morrer (visto que ele já está condenado), mas apenas a salvar os restantes.

  Nas outras situações de conflito entre vidas – em que a única possibilidade é a de matar alguém para salvar os demais, mas ninguém está condenado à partida –, não se trata somente, note-se, de negar ao médico o direito a decidir que alguém deve morrer em lugar de outrem, mas também de reconhecer ao sacrificado – o escolhido para ser morto – o direito de se defender. Uma razão básica de igualdade impõe-nos reconhecer a todos os potenciais sacrificados igual direito de legítima defesa. Nenhum deles praticou uma agressão ilícita ou adoptou outro procedimento que justifique a perda deste direito.

  Como se concretizam estas orientações no quadro de pandemia actual, em que, como sucedeu em Itália, na falta de máquinas de ventilação, os médicos se podem ver obrigados a escolher entre pacientes?

  A imponderabilidade do bem vida deve preservar-se como base de quaisquer orientações de decisão, de modo que as directrizes de actuação que se entenda adequado adoptar para guiar o pessoal médico em situações de escolha não poderão perverter a ideia de que nenhuma vida tem mais valor que outra. A esta luz, mostra-se inaceitável a recomendação da SIAARTI (Società Italiana di Anestesia, Analgesia, Rianimazione e Terapia Intensiva), segundo a qual, na falta de recursos, estes deverão ser alocados em função, primeiramente, das probabilidades de sobrevivência, e, depois, do número de anos de vida salvos com o tratamento, admitindo mesmo a necessidade de introduzir limites de idade[2]. O valor da vida não se afere por referência ao tempo de duração remanescente para ela previsto, pelo que o princípio da igualdade proíbe erigir este factor como diferencial na ponderação.

  Não é de excluir, ainda assim, que a idade termine sendo factor que indirectamente condicione os termos do exame. Estando as probabilidades de sucesso do tratamento associadas à idade do paciente, como sucede nos casos de COVID-19, pode justificar-se em alguns casos (não em todos, porque não se trata de factor de verificação universal) preterir o paciente mais idoso em favor do mais novo – não, insista-se, porque a vida do idoso valha menos, mas sim porque a diferença de idades se pode traduzir em desproporção significativa nas hipóteses de sucesso (de modo que só terá relevância quando assim seja). Note-se também que este tipo de escolha só faz sentido em panoramas de necessidade extrema, em que o risco tem para ambos os pacientes dimensão significativa. Se, v. g., o paciente jovem tem 100% de hipóteses de sobreviver com tratamento de ventilação, e 90% sem ele, não há razão para impor a preferência por este doente em detrimento do idoso que tem, correspondentemente, 0% e 40% de hipóteses.

  Por fim, as especificidades apontadas para os casos de conflito entre dever de acção e dever de omissão carecem de maior esclarecimento.

  Os factores de ponderação apontados – sobretudo, a probabilidade de sucesso do tratamento – estão subordinados à distinção entre (dever de) acção e (dever de) omissão, não o inverso. Destarte, o cenário em que o médico está perante dois pacientes, A e B, que precisam de ser ligados a uma máquina, mas só há uma disponível, é diferente do cenário em que um dos pacientes, A, já está ligado à máquina quando B chega ao hospital. Com efeito, traduzindo-se a acção de desligar a máquina em interromper o processo de salvamento de A, ao menos enquanto pudermos descortinar nesta acção uma intromissão na esfera de domínio sobre os bens jurídicos de outrem, ou, se se preferir, no espaço de liberdade de decisão e supertintendência sobre os seus bens, ela terá de ser vista como mais desvaliosa que qualquer comportamento não passível de assumir este significado (como o de não fazer nada, ou o de interromper um processo de salvamento que ainda não atingiu a esfera da vítima).

  Distinções formuladas nestes termos trazem sempre consigo as preocupações de decidirmos em função do acaso, de contingências que parecem não ter importância em si mesmas: que A tenha chegado ao hospital antes de B pode dever-se a eventualidades tão irrisórias que nos obrigam a perguntar pela justiça de em resultado disso favorecermos a posição de um em face do outro[3]. Mas o acaso da origem não apaga as distorções no quadro final. A sorte que ligou A à máquina mais cedo não lhe reforça nenhum direito em abstracto. Mas a acção de desligar-lhe a máquina terá sempre o significado de perturbação do estado de coisas com base no qual se desenham as esferas de autonomia e liberdade de cada um, mais concretamente, de intromissão no espaço de outrem[4]. Por princípio, este tipo de actuação é mais desvalioso que o de não perturbação[5]. Este desvalor maior terá então de ser compensado por dados que redundem no reforço especial da vinculatividade do dever de salvar outrem, tornando os deveres equivalentes. Isto pode suceder em casos mais extremos, como, e. g., na hipótese de se prever que A vai seguramente morrer muito em breve, enquanto B tem boas hipóteses de ser salvo, desde que seja ligado imediatamente à máquina que mantém A vivo.


[1] Este ponto, como outros tratados a seguir, foi por nós desenvolvido em António Brito Neves, “Do conflito de deveres jurídico-penal: uma perspectiva constitucional”, O Direito, 144 (3), 2012 (pp. 673-727).

[2] “Può rendersi necessario porre un limite di età all’ingresso in T[erapia] I[ntensiva]. Non si tratta di compiere scelte meramente di valore, ma di riservare risorse che potrebbero essere scarsissime a chi ha in primis più probabilità di sopravvivenza e secondariamente a chi può avere più anni di vita salvata, in un’ottica di massimizzazione dei benefici per il maggior numero di persone” (http://www.quotidianosanita.it/allegati/allegato6382982.pdf).

[3] São preocupações como estas que levam, por ex., Christian Jäger/ Johannes Gründel, “Zur Notwendigkeit einer Neuorientierung bei der Beurteilung der rechtfertigenden Pflichtenkollision im Angesicht der Corona-Triage”, ZIS, 15 (4), 2020 (pp. 151-163), p. 159,  a defender, perante casos de pandemia como o actual, que se prescinda de pensar segundo a lógica dualista que opõe simplesmente dever de acção a dever de omissão, diferenciando destes o dever de tratamento, em causa sempre que os pacientes se encontrem naquilo a que os autores chamam “comunidade de perigo e de salvamento”. Neste quadro, a acção e a omissão equivalem-se valorativamente, podendo o médico, segundo concluem, desligar a máquina de um paciente, se há maiores hipóteses de sucesso no tratamento do outro.

[4] A própria fronteira (entre acção e omissão, entre criação do risco e não diminuição do risco, etc.) pode tornar-se problemática. Se a máquina que mantém vivo o paciente requer acções frequentes do médico responsável, pode bem suceder que esta situação esteja mais próxima, no que respeita aos seus moldes problemáticos, de um caso de reanimação por respiração boca-a-boca do que daquele em que foi atirada uma bóia ao nadador em perigo e este passou a poder salvar-se sozinho. Naquele caso, com efeito, pode bem impor-se a conclusão de que o desligamento da máquina não chega a constituir intromissão indevida no espaço alheio, mas mera abdicação de prosseguir com a actuação de salvamento.

[5] Este juízo ecoa em diferentes quadrantes e disciplinas: lembre-se, por ex., como Philippa Foot, no seu famoso artigo sobre casos de “duplo efeito”, justifica as soluções que dá com a ideia de que causar dano é pior que deixar de providenciar ajuda: “The Problem of Abortion and the Doctrine of the Double Effect”, in Philippa Foot, Virtues and Vices: And Other Essays in Moral Philosophy, Oxford: Oxford University Press, 2002 (pp. 19-31), pp. 27 e ss. (disponível neste blog).

Breve interrogação sobre o crime de propagação de doença contagiosa e o perdão no Regime excepcional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, por Rita do Rosário

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O elenco de crimes que ficam excluídos do regime do perdão estabelecido no número 6 do artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, convoca múltiplas ponderações pelo insuficiente esclarecimento sobre o critério de selecção dos crimes e respectiva ratio. O catálogo parece reflectir duas preocupações essenciais, já enunciadas e problematizadas no artigo da Professora Maria Fernanda Palma «“Comentários de emergência” à lei do perdão das penas» (publicado neste blog a 10 de Abril de 2020), interessando-nos, neste texto em particular, o referente à «defesa da sociedade e a prevenção especial, na perspectiva da perigosidade dos agentes em conexão com os crimes mais violentos e intoleráveis contra as pessoas». Entre as várias questões que o art. 2.º, n.º 6, convoca, escolhemos, no âmbito deste pequeno escrito, a que resulta da confrontação da referida fundamentação e a realidade empírica com que nos deparamos, respeitante ao problema de saber se o crime de propagação de doença contagiosa (art. 283.º, n.º 1, al. a), do Código Penal) está, ou não, excluído do âmbito material do perdão, uma vez que o mesmo tem evidente relevância e gravidade no actual contexto de saúde pública.

O crime de propagação de doença contagiosa não está elencado nos crimes cuja possibilidade de perdão fica afastada (art. 2.º, n.º 6, da Lei n.º 9/2020), pelo que se impõe, de imediato, a conclusão de que, desde que verificados os restantes pressupostos, é admissível, à luz da presente Lei, o perdão em casos de condenação pelo crime mencionado.

Se a ausência da sua contemplação se poderá explicar pela inaplicabilidade do perdão aos casos actuais de contágio – uma vez que o mesmo apenas poderá ser empregado em situações cuja decisão sobre a pena em que foi condenado o arguido tenha transitado em julgado antes da vigência do diploma (art. 2.º, n.º 7) –, não podemos deixar de questionar sobre a possibilidade de perdão em casos cuja propagação seja de doença diferente da Covid-19: ainda que estas situações não revistam o carácter pandémico e de emergência para a saúde pública que caracteriza a propagação da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2, poderá perguntar-se se esta distinção terá fundamento bastante.

Por um lado, há que considerar a perigosidade para a integridade física ou vida de outrem[1] que poderá ser criada com a sua prática, podendo colocar o contagiado num estado de vulnerabilidade acrescida que o tornará mais frágil perante uma eventual infecção epidemiológica por SARS-CoV-2.

Por outro lado, o contágio poderá levar ao desenvolvimento de uma doença cujo tratamento exigirá a mobilização de meios técnicos e humanos que atravessam, em crescendo, uma dramática crise. Se o legislador protegeu bens jurídicos pessoais graves, excluindo-os do âmbito material do perdão, causa perplexidade que tenha sido omisso quanto a um crime que – hoje, mais que alguma vez neste século – se poderá materializar uma afectação tão significativa dos mesmos.

Ademais, a aplicação do perdão em casos em que tenha havido condenação pela prática deste crime resultaria, precisamente, na abertura para uma visão de impunidade sobre os comportamentos que elevem o número de contágios pelo SARS-CoV-2: se estes não podem ser abrangidos pelo perdão (pelo, já referido, pressuposto da condenação anterior à vigência da lei transitada em julgado), a possibilidade da sua utilização em caso de condenação pelo crime em questão, mesmo que referente a doença diversa, poderá traduzir-se numa distinção socialmente confusa e num factor enfraquecedor do almejado cumprimento das «exigências relativas de prevenção, geral e especial, e de estabilização dos sentimentos de segurança comunitários» (exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 23/XIV, Presidência do Conselho de Ministros).

Em conclusão, a ausência de referência ao crime de propagação de doença contagiosa pelo legislador a propósito do perdão representa uma contradição sistemática que, se, à primeira vista é meramente teórica, poderá, com efeito, concretizar-se em soluções práticas inadequadas. É certo que a relevância prática destas observações apenas será efectiva se estiverem, à data, indivíduos a cumprir pena pela prática do crime em causa. Embora tenhamos registos sobre a prática dos mesmos[2], as estatísticas oficiais disponíveis não nos permitem concluir sobre o actual cumprimento de pena na sequência dessas condenações[3]. Ainda assim, a possibilidade de que tal se verifique justifica a reflexão aqui exposta e impõe, caso os dados empíricos a que o legislador tenha acesso o confirmem, uma reflexão deste sobre este ponto.


[1] Seguimos, na linha defendida pela Professora Maria Fernanda Palma, ainda recentemente, no texto «Propagação de doença contagiosa», publicado neste espaço a 10 de Abril, a protecção da vida e integridade física de outrem, por oposição a uma perspectiva de protecção de saúde pública que apenas admita o preenchimento do tipo nos casos de lesão ou perigo de lesão múltipla, negando as situações de transmissão directa para uma única pessoa.

[2] No Relatório Anual de Estatísticas da APAV de 2018, página 8, registavam-se três crimes de propagação de doença contagiosa: https://apav.pt/apav_v3/images/pdf/Estatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2018.pdf.

Relatórios anteriores também notavam a prática do referido crime: dois no Relatório de 2017, página 9 (https://apav.pt/apav_v3/images/pdf/Estatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2017.pdf); um no Relatório de 2016, página 8 (https://apav.pt/apav_v3/images/pdf/Estatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2016.pdf); um no Relatório de 2015, página 17 (https://apav.pt/apav_v3/images/pdf/Estatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2015.pdf); três no Relatório de 2013, página 10 (https://apav.pt/apav_v3/images/pdf/Estatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2013.pdf); quatro no Relatório de 2012, página 9 (https://apav.pt/apav_v3/images/pdf/Estatisticas_APAV_Totais_Nacionais_2012.pdf); seis no Relatório de 2011, página 25 (https://apav.pt/apav_v3/images/pdf/Estatisticas_APAV_RelatorioAnual_2011.pdf).

[3] As Estatísticas de Justiça disponíveis para o público em geral não autonomizam os dados sobre o número de condenados pela prática deste crime. Contudo, não podemos descartar, sem mais, a possibilidade de que a propagação de doença contagiosa esteja integrada na categoria de «outros crimes» (https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt).

A mesma questão se coloca no que respeita aos Números da Justiça publicados em Dezembro de 2019, que apenas autonomizam a categoria dos «crimes contra a vida em sociedade», sem referir cada crime em particular, no gráfico sobre os Reclusos condenados nos estabelecimentos prisionais, segundo o tipo de crime (31 de dezembro de 2007-2018), pág. 33 (https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Destaques/20191213_Os_numeros_da_justica_2018.pdf), observando-se igualmente esta categorização nos Números da Justiça de 2017, publicados em Novembro de 2018, no gráfico referente aos Reclusos condenados nos estabelecimentos prisionais, segundo o tipo de crime (31 de dezembro de 2007-2017), pág. 34 (https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Destaques/20181129_OsNumerosDaJustica_2017.pdf), bem como Números da Justiça de 2016, publicados em Novembro de 2017, no gráfico referente aos Reclusos condenados nos estabelecimentos prisionais, segundo o tipo de crime (31 de dezembro de 2007-2016), pág. 34 (https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Destaques/20171214_DOsNumerosDaJustica_2016.pdf), nos de 2015, publicados a Dezembro de 2016, no gráfico sobre os Reclusos condenados nos estabelecimentos prisionais, segundo o tipo de crime (31 de dezembro de 2007-2015), pág. 35 (https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Destaques/20161220_Os%20n%C3%BAmeros%20da%20Justi%C3%A7a_2015.pdf), nos de 2014, publicados em Dezembro de 2015, no gráfico sobre os Reclusos condenados nos estabelecimentos prisionais, segundo o tipo de crime (31 de dezembro de 2007-2014), pág. 36 (https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Destaques/20151218_Os_numeros_Justi%C3%A7a_2014.pdf).

A mesma autonomização é realizada nas Estatísticas sobre reclusos nos estabelecimentos prisionais e jovens internados em centros educativos (2010-2018), publicadas no Boletim de Informação Estatística n.º 64, em Maio de 2019, pág. 2, figura 4, sobre Reclusos nos estabelecimentos prisionais segundo o tipo de crime (https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Destaques/20190531_D64_ReclusosEJovensInternados_2010-2018.pdf), à semelhança das referentes a 2010-2017, publicadas no Boletim de Informação Estatística n.º 58, em Maio de 2018, pág.  2, fig. 4 (https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Destaques/20180530_D58_ReclusosEJovensInternados_2010-2017.pdf).

Refira-se, ainda, a categoria de «outros crimes de perigo comum», nos dados sobre o número de condenados nos tribunais de 1.ª instância (https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Paginas/Condenados-em-processos-crime-nos-tribunais-judiciais-de-1-instancia.aspx).

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Perdão e pandemia – questões de constitucionalidade, por Rui Pereira

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Lei n.º 9/2020, de 10 de abril 

(Regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça)

Questões de constitucionalidade

1 – Não sofre contestação que uma lei de amnistia ou de perdão genérico, sendo uma verdadeira lei penal, está sujeita aos princípios constitucionais de Direito Penal e Política Criminal (assim, incisivamente, Fernanda Palma, em declaração de voto ao Acórdão do Tribunal Constitucional nº 519/98, de 14 de julho: trata-se de “uma lei penal que apaga o crime durante um certo lapso de tempo… de uma lei descriminalizadora temporária”.). 

Mesmo que se reconheça que a admissibilidade da amnistia não é delimitada pelos fins específicos da política criminal, reduzidos à clássica tríade dos fins das penas – prevenção geral, prevenção especial, retribuição -, o que permite aceitar as amnistias ditadas por razões de magnanimidade (por exemplo, a visita do Papa), por razões políticas gerais (crimes das FP 25 de Abril) ou corretivas (seja da lei penal seja da jurisprudência), os princípios da legalidade, da necessidade da pena, da culpa e da igualdade conformam o seu conteúdo (cf. a abundante fundamentação do citado Acórdão nº 519/98, relatado por Sousa e Brito).

2 – Ao estabelecer um perdão genérico (até dois anos de prisão), a Lei n.º 9/2020, de 10 de abril respeita o princípio da legalidade, tanto em relação à reserva de lei como quanto às exigências de precisão das normas (tipicidade). Por outro lado, os princípios da necessidade da pena (artigos 18º, nº 2, da Constituição e 40º do Código Penal) e da culpa (artigo 1º da Constituição) não estão aqui, manifestamente, em causa: em primeiro lugar, porque se trata de princípios restritivos da responsabilidade, dos quais não se deduz o dever de punir; em segundo lugar, porque a amnistia é permeável, por natureza, a considerações políticas gerais. 

Com efeito, nesta lei, o perdão genérico é ditado por razões humanitárias e de saúde pública, no quadro de uma pandemia, embora lhe co-subjaza um problema (crónico) de excesso de lotação dos estabelecimentos prisionais, que não permite isolar reclusos contaminados pela doença.

3 – No entanto, o princípio constitucional com o qual a lei se confronta é, decisivamente, o princípio da igualdade, por várias razões: em primeiro lugar, não é aceitável que tenham sido subtraídos ao âmbito do perdão genérico certos crimes graves (terrorismo e organização terrorista) e nele incluídos alguns crimes menos graves (seja qual for a perspetiva político-criminal em que se aprecie a gravidade desses crimes); em segundo lugar, é inadmissível que beneficiem do perdão genérico arguidos punidos com penas mais graves (prisão) e sejam esquecidos arguidos punidos com penas menos graves (multa), pela prática dos mesmos crimes. Estes aspetos, focados no artigo de Fernanda Palma que abriu este sítio na internet, consubstanciam claras violações do princípio da igualdade.

Como corrigir estas desigualdades? Como é óbvio, aos condenados por crimes de terrorismo não se pode aplicar in malam partem uma analogia que obste a que eventualmente beneficiem do perdão genérico. Quando muito, a solução admissível seria a inversa – conceder o perdão genérico a agentes e crimes excetuados do perdão genérico, por se considerar que essa exceção é inconstitucional, por violar o princípio da igualdade, quando confrontada com os casos de terrorismo.

Por outro lado, no caso da multa, pode formular-se também uma obrigação de perdão do Estado, nos casos em que esta solução sancionatória foi preferida à prisão em nome de necessidades preventivas, gerais e especiais, menos intensas.

4 – Um outro problema de igualdade que ainda se coloca diz respeito ao âmbito de aplicação das medidas de saída administrativa (até 45 dias renováveis), antecipação da liberdade condicional (pelo período máximo de seis meses e subsequente às saídas administrativas) e reexame da prisão preventiva. A lei não exclui os crimes considerados graves nem os agentes com responsabilidades “especiais” (políticos, magistrados, polícias) do âmbito de aplicação destas medidas. Todavia, logo no artigo 1º, estabelece que (todas) as medidas da lei se não aplicam a condenados por crimes cometidos “contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários e guardas dos serviços prisionais, no exercício das respetivas funções”. 

Está aqui em causa um manifesto lapso, porque o legislador não quis reservar um regime especial para estes crimes. Com efeito, eles até haviam sido esquecidos na proposta de lei e foi a discussão parlamentar que, muito compreensivelmente, detetou a “lacuna”, por se ter entendido que não seria razoável excluir do âmbito do perdão crimes cometidos por agentes do Estado e esquecer os crimes cometidos contra agentes do Estado. Também aqui a superação da inconstitucionalidade só pode ser operada in bonam partem, estendendo aos crimes cometidos contra agentes do Estado o regime previsto para os crimes mais graves ou cometidos por esses agentes.

5 – Um último problema de constitucionalidade que a lei coloca diz respeito ao âmbito do indulto presidencial. De forma inédita, o indulto, que corresponde a uma medida casuística e irrestrita de graça da competência do Presidente da República, é aqui subordinado (aliás, com o seu aparente consentimento político) a restrições que são importadas do próprio regime do perdão genérico.

A verdade, porém, é que não parece admissível que uma lei da Assembleia da República restrinja os poderes presidenciais previstos na Constituição (artigo 134º, alínea f). A Assembleia tem de se limitar, nesta matéria, à sua reserva de competência legislativa, ou seja, às amnistias e aos perdões genéricos (artigo 161º, alínea f) da Constituição). A concordância do Presidente não é aqui parâmetro de constitucionalidade (o Presidente é que deve, na concessão de indultos, disciplinar com os critérios que lhe pareçam razoáveis a sua própria ação política). Imagine-se que a Assembleia decidia, doravante, limitar os critérios dos indultos e comutações presidenciais…

6 – Uma lei de amnistia é passível de fiscalização de constitucionalidade (preventiva, abstrata sucessiva, concreta sucessiva; não por omissão, na medida em que não se configura a existência e consequente violação de deveres de amnistiar). No entanto, no quadro do estado de emergência, dificilmente a fiscalização poderá ter consequências práticas. A fiscalização preventiva não foi solicitada (se o fosse anularia ou diminuiria os efeitos prosseguidos pela lei) e a fiscalização abstrata sucessiva dificilmente será pedida por alguma das entidades competentes e, muito provavelmente, seria apreciada quando a lei já não estivesse em vigor e suscitaria um problema de interesse no conhecimento do respetivo objeto.

De todo o modo, não se pode excluir a possibilidade de interposição de recursos de constitucionalidade por aqueles que forem discriminados negativamente, nos termos que referi.

Lisboa, 13 de abril de 2020

Rui Pereira

(Professor Convidado no ISCSP e no ISCPSI)

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Propagação de doença contagiosa, por Maria Fernanda Palma

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[powerpoint apresentado no II Curso Pós-Graduado de Atualização sobre Direito da Medicina e Justiça Penal, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa]

O problema penal

Artigo 283.º do Código Penal

Questões:

• Qual o bem jurídico?
• Em que espécie de comportamentos consiste a conduta típica?
 
Resposta?
• Bem jurídico complexo
• Natureza pessoal (vida e integridade física)
+ natureza coletiva (segurança da saúde pública)

   Problema:

• O crime de propagação protege logo bens de titularidade individual ou pretende ser antes a proteção da segurança da saúde coletiva?

Consequências das duas hipóteses

Hipótese 1:     A lesão ou perigo de lesão dá-se logo com a transmissão para uma única pessoa
Hipótese 2:  A lesão ou perigo de lesão tem de ser múltipla

Solução sistematicamente adequada:

• O tipo penal pretende abarcar um conjunto amplo de comportamentos desde a o contágio direto pessoa a pessoa até ao contágio múltiplo e indiferenciado.
 
• É suficiente que apenas uma pessoa seja vítima do contágio e que nem sequer haja probabilidade de disseminação.
 
• O que está em causa é o controle de um poder social real de transmitir uma doença. É esse poder específico por ação ou até por omissão que extravasa a competência organizacional (Jakobs)da esfera própria e interfere com a alheia que é o objeto jurídico do tipo legal de crime.
 

Crítica a Damião Cunha no Código Conimbricense (p. 1006 e ss):

• Não considera o sentido e contexto social da propagação de doença contagiosa(o controle da saúde alheia pelo meio da propagação)
• Desenha o bem jurídico a partir das palavras da lei fora do contexto semântico: Propagar é difundir , transmitir e dominar o poder de transmissão por meios que não são os típicos de homicídio ou ofensas corporais
• Aceita soluções valorativamente incongruentes ou sem a devida diferenciação(multiplica os entes sem justificação)
• Assim, para D. Cunha não haveria crime de propagação se o agente transmitir uma doença a uma só pessoa num contexto em que outras pessoas não poderiam ser
 
Robinson Crusoe nunca poderia propagar uma doença contagiosa?

No entanto, independentemente de outros crimes contra as pessoas, por ação ou omissão, o seu comportamento poderia caber no artigo 283º: usa o seu controle sobre a transmissão de doenças dolosa ou negligentemente

Os argumentos de D. Cunha:

• Argumento literal -interpretação de propagar ?
• Argumento da ratio legis?
• Argumento sistemático?
 

Os argumentos de F. Palma:

• A expressão propagar não reclama um resultado coletivo, mas  um modo de atuação. Por outro lado o tipo exige apenas a criação de um perigo para a vida ou integridade física de outrem
 

Argumento da ratio legis ?

• Se a ratio legis é como diz D. Cunha o perigo para a sociedade, tal perigo não depende do número de atingidos mas de um poder de controle disponível pelo agente sobre a esfera de outros

Argumento sistemático ?

• A propagação tal como outros crimes de perigo depende de uma especial perigosidade da ação tal como acontece nas outras alíneas do mesmo preceito
 
 
Imputação objetiva do crime de perigo concreto
 
• Quando é que se pode entender que o perigo para a vida ou saúde decorre (foi criado pela) da propagação?
 
• 1- A decorrência significa causalidade adequada , no sentido de previsibilidade ex ante da criação de um perigo verificável ex post?
• 2- Nos termos da teoria do risco , trata-se da criação ou aumento do risco concretizável ex post de que um perigo de dano para a vida ou saúde se verifique?
 
• Criação ou aumento do risco do perigo verificável ex post?
 
• O que significa criar um risco de perigo através da propagação? Pressupõe levar a contrair uma doença, a mera contaminação com o agente infeccioso ou até apenas o contacto com o mesmo?
 
• Segundo a lógica da  teoria do risco, trata-se de criar ou aumentar o  perigo de um perigo e não diretamente do resultado(substitui-se o perigo do resultado pelo perigo do perigo)
• Assim, a imputação objetiva é bastante antecipada relativamente ao resultado.

Imputação objetiva

• A criação do perigo do perigo em que é que consiste?

• Para Roxin (Strafrecht , Allgemeiner Teil), 3ª ed., p.354), citando jurisprudência germânica, a imputação no tipo objetivo nos crimes de perigo concreto(Gefährdungsdelikte)pressupõe que a ação típica afetou intensamente a segurança de uma pessoa ou coisa de modo que só por acaso é que o bem jurídico não é lesado.

• O seu critério parece ser o da inevitabilidade do dano sem medidas imprevisíveis

• A imputação objetiva no crime de propagação não pode exigir já a verificação da doença que ultrapassa o perigo nem se bastar com a mera disponibilidade por um hospital de um produto infetado ou até  um contacto da potencial vítima com o agente infeccioso.•Deve exigir ,antes,uma fase de inevitabilidade do curso infeccioso, que em geral exigirá um contacto e um curso previsível

• No caso célebre dos hemofílicos , o Tribunal da Relação de Lisboa , considerou consumado o crime de perigo com a disponibilização hospitalar do produto infetado•Na tese da defesa: «O crime de propagação de doença contagiosa é um crime de perigo concreto o que faz dele, por isso mesmo, um crime de resultado; 
Assim, no caso concreto, o momento da consumação deu-se em 18 de Julho de 1986, isto é, no momento em que entraram nos Hospitais Civis de Lisboa 500 frascos do lote n.º 810536 (Factor VIII) e que estariam eventualmente infectados com o vírus da Síndrome da lmunodeficiência Adquirida»

As configurações:

  1. Dolo de propagação + criação dolosa do perigo

2. Dolo de propagação + negligência de perigo

3. Negligência de propagação + negligência de perigo

Exemplos:

  1. disponibilização de sangue contaminado com representação e aceitação desse facto e indiferença pela criação do perigo

2. disponibilização de sangue contaminado com representação e aceitação desse facto, mas convicção de que ninguém ficará sujeito ao perigo

3. disponibilização por falta de controle adequado de sangue contaminado

Problemas de imputação objetiva na transmissão da sida

• O modo de atuação da doença , atacando o sistema imunitário, e não provocando diretamente lesões permite concluir pela imputação objetiva  da morte ou apenas do perigo?

• A resposta é afirmativa quanto ao dano, enquanto não existirem meios normalmente eficazes para impedir a evolução da doença.

• Quem é condenado à morte , sendo executada a sentença dali a anos,não deixa de morrer em consequência dessa condenação anterior

• Argumento da inevitabilidade

• Se morrer por outras causas, completamente estranhas, haverá interrupção do nexo causal.

Problemas de imputação subjetiva na transmissão do vírus da sida

1- Apesar da probabilidade de transmissão ser, em certos casos, baixa não deixa de existir dolo de propagação tal como nas situações de dolo direto com baixa probabilidade de êxito da ação

2- O dolo de propagação só é irrelevante quando houver nos casos de perigo negligenciável

Questões de direito de necessidade em face de um perigo de transmissão de doença contagiosa 

• Justificação da violação do segredo médico no crime de transmissão?

Violação do segredo médico:
Respostas possíveis

1- Invocação do dever de segredo absoluto em função da relação de confiança e do bem público(posição da ordem dos médicos no acórdão do tribunal de torres vedras em 2007)

2- violação do segredo com invocação em concreto do direito de necessidade(artigo 34º)

3- dever de violar o segredo em casos de perigo iminente e muito grave insuperável de outro modo(artigo 135º,nº3, do Código de Processo Penal, posição do acórdão de 2007 do tribunal da Relação de Lisboa, no caso de torres vedras)

Internamento compulsivo de doentes infecto-contagiosos?

• Fundamento Constitucional?

• Fundamento legal?

• Deve ser fundamentalmente entendido como um ato médico, destinado ao tratamento do paciente

• Nessa base restritiva pode ser justificado por direito de necessidade de cariz público, na medida em que o portador da doença  não é instrumentalizado, mas considerado um fim em si mesmo, não se violando a alínea c) do artigo 34º do Código Penal

Internamento e discriminação

Os Aleijados, 1568 – Pieter

Este pequeno painel sempre foi conhecido como Os Aleijados mas, recentemente, demonstrou-se que os homens são, na verdade, leprosos

Debate sobre internamento compulsivo de doente contagioso

• em 2005, o Tribunal da Relação do Porto decidiu que “é legal o internamento compulsivo de quem, padecendo de tuberculose pulmonar, recusa tratar-se e deambula pelas vias públicas, podendo assim afectar outras pessoas.”

Argumentos pro e contra

Pro:

• ponderação de valores e de interesses

• Saúde pública

Contra:

• afastamento dos doentes do tratamento

• Discriminação de certos doentes

Professora Doutora Maria Fernanda Palma

Não é permitida a reprodução do artigo sem autorização da autora 

“Comentários de emergência” à lei do perdão das penas, por Maria Fernanda Palma

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(I)

Do espírito da lei e dos seus problemas

Esta lei, aprovada ao abrigo da reserva relativa de competência da Assembleia da República (artigo 165º, nº 1, alínea c), da Constituição), contempla cinco espécies de medidas: um perdão genérico da Assembleia da República (2 anos), um indulto do Presidente da República, antecipação da liberdade condicional pelo Tribunal de Execução de Penas (6 meses), concessão de saídas administrativas pelo Diretor-Geral de Reinserção Social e dos Serviços Prisionais, com possibilidade de delegação nos Diretores-Gerais Adjuntos (até 45 dias, renováveis) e reexame dos pressupostos da prisão preventiva pelo Juiz de Instrução. Preside à lei um sentido de emergência humanitária e de saúde pública, constitucionalmente justificado. No entanto, suscita alguns problemas:

  1. Na perspetiva político-criminal e político-social, a lei é equívoca, pois mistura duas lógicas difíceis de compatibilizar no que se refere aos crimes excetuados: por um lado, a defesa da sociedade e a prevenção especial, na perspetiva da perigosidade dos agentes em conexão com os crimes mais violentos e intoleráveis contra as pessoas; por outro lado, uma lógica retributiva e de prevenção geral positiva, no que se refere aos crimes de titulares de cargos públicos, de elementos de forças ou serviços de segurança e de magistrados. Na realidade, na perspetiva da prevenção especial, muitos destes últimos casos poderiam não vir a significar perturbação social ou perigosidade concreta. 
  2. Apesar de ser uma lei de perdão em estado de emergência, esta lei não está isenta de uma apreciação de constitucionalidade, à luz dos princípios da legalidade, da necessidade da pena, da culpa e da igualdade. Ora, o legislador não justifica senão vagamente as suas ponderações, nomeadamente o equilíbrio difícil de sustentar entre a prevenção e a retribuição, isto é, prevenção apenas para os crimes contra as pessoas e retribuição para os crimes de certas categorias de pessoas. Por outro lado, não refere dados empíricos que deveriam estar disponíveis sobre o tipo e número de condenados por espécie de penas perdoadas, não se tendo acesso à avaliação técnica que foi feita.
  3. No projeto tinham ficado inexplicavelmente de fora das exceções ao regime do perdão genérico e do indulto os crimes de ofensas corporais graves, que foram entretanto acrescentados na versão final do diploma.
  4.  Sendo excetuados os crimes cometidos por agentes do Estado no exercício das suas funções (membros das polícias, das Forças de Segurança e das Forças Armadas, funcionários e guardas dos serviços prisionais, titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos e magistrados judiciais ou do Ministério Público), o projeto também omitia os crimes praticados contra eles. No entanto, o acrescentamento posterior desses crimes veio, pela sua localização sistemática (artigo 1º, nº 2), gerar uma incongruência: não se lhes aplica, no seu todo, o regime da lei, o que impede também a antecipação da liberdade condicional e a concessão de saídas administrativas. Todavia, estes regimes são aplicáveis a todos os restantes crimes excetuados pela lei quanto ao perdão genérico e ao indulto presidencial, não fazendo qualquer sentido a discriminação.
  5. O elenco de crimes que caem fora do âmbito do perdão genérico e do indulto apresenta “lacunas” incompreensíveis, que, de acordo com o princípio da legalidade penal (artigo 29º da Constituição), não poderão ser integradas por analogia. É o caso, designadamente, dos crimes de terrorismo e de organização terrorista.
  6. Outra omissão relevante da lei diz respeito à pena de multa, suscitando um problema de igualdade. Os condenados perdoados a quem se poderia ter aplicado a multa, mas não foi por razões de prevenção, serão beneficiados relativamente aos que sofreram uma multa pela prática de crimes idênticos.
  7. A lei também não refere quaisquer medidas de acompanhamento pela reinserção social, o que subtrai os condenados a uma ressocialização necessária numa situação particularmente difícil. Prevê-se, no entanto, que o perdão fica sujeito a uma condição resolutiva, no caso de o beneficiado cometer um crime doloso no prazo de um ano.

Os fundamentos do Indulto Presidencial

Sendo a lei de perdão enformada por uma lógica de generalidade limitada por exceções, o indulto também o é, por expressa remissão legal, o que pode frustrar parcialmente os objetivos humanitários que procura atingir. Também aí uma lógica de exceção retributiva condicionará uma figura que poderia ser mais abrangente para pessoas especialmente vulneráveis. Além disso, uma lei que submete o instituto do indulto e da comutação a uma lógica de amnistia e perdão genérico acaba por contrariar as finalidades daquele instituto e restringir os poderes presidenciais.

As saídas administrativas e a liberdade condicional

Por decisão do Diretor-Geral da dos Serviços Prisionais, podem ser concedidas “saídas administrativas” por um período máximo de 45 dias. Não se trata de saídas judiciais da competência de juiz (Tribunal de execução de Penas), mas sim de medidas de natureza administrativa, renováveis, que poderão ser seguidas uma antecipação da liberdade condicional, pelo período máximo de seis meses, essa já da competência de juiz.  Estas saídas estão sujeitas ao regime previsto no artigo 78.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade para as saídas administrativas de curta duração, que são da competência dos diretores de estabelecimentos prisionais e pressupõem que o recluso já tenha beneficiado de uma saída jurisdicional. Contudo, a sua longa duração, o caráter renovável e a articulação com a liberdade condicional antecipada aconselhariam a que fosse uma medida jurisdicional (o que não terá acontecido por razões de “praticabilidade”).

O reexame dos pressupostos da prisão preventiva

Prevê-se ainda (no artigo 7º) que o juiz deve proceder ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva, independentemente do decurso dos três meses previsto no artigo 213.º do Código de Processo Penal. Continua a exigir-se uma ponderação que tenha em conta, designadamente, a “efetiva” subsistência dos requisitos gerais previstos no artigo 204.º daquele Código. Esta medida aplica-se a todos os crimes e a todos os agentes, sem exceção (a lei não faz aqui nenhuma restrição). Uma eventual redução teleológica do regime de reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou uma aplicação analógica das restrições previstas para ao perdão e o indulto violariam claramente o princípio da legalidade penal (artigo 29º da Constituição).

Sobre esta questão, cfr. Albergaria, P. , Revista Julgar online, Abril, 2, 2020.

Professora Doutora Maria Fernanda Palma

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